domingo, 31 de agosto de 2014

Vida - Walt Whitman



Vida
 
Sempre a indesencorajada alma do homem
resoluta indo à luta.
(Os contingentes anteriores falharam?
Pois mandaremos novos contingentes
e outros mais novos.)
Sempre o cerrado mistério
de todas as idades deste mundo
antigas ou recentes;
sempre os ávidos olhos, hurras, palmas
de boas-vindas, o ruidoso aplauso;
sempre a alma insatisfeita,
curiosa e por fim não convencida,
lutando hoje como sempre,
batalhando como sempre.



Walt Whitman
in "Leaves of Grass"

sexta-feira, 29 de agosto de 2014

São pedras - Lídia Borges


São pedras

Por cima desta faixa de cinza
haverá poeta capaz
de construir um jardim
chamar as crianças e entregar-lho?

Como desenhar um arco-íris
do terror à lágrima
num céu sempre noturno
riscado por bombas
em lugar de estrelas

Refugiadas nas pupilas
das crianças mortas
estrelas gelam
São pedras

E as pedras armas
e as armas bombas
e as bombas ódios
e os ódios
estilhaços nos olhos dilatados
das crianças mortas

Haverá poeta capaz
de plantar uma árvore
no peito dos homens
chamar as aves e entregar-lha?

Haverá ave
capaz de cantar ainda
dentro do coração inorgânico
dos senhores da guerra?

Lídia Borges
in “Searas de Versos”

(poema amavelmente cedido porque não o consegui surripiar.)
Sou um José do Telhado da poesia, roubo para dar a quem dela necessite.
Avisem a polícia ou internem-me como cleptómano.
 

Adolfo Casais Monteiro - EU FALO DAS CASAS E DOS HOMENS

(dedico aos meninos de Gaza)

EU FALO DAS CASAS E DOS HOMENS
        
Eu falo das casas e dos homens,
        dos vivos e dos mortos: 
        do que passa e não volta nunca mais... 
        Não me venham dizer que estava materialmente 
        previsto, 
        ah, não me venham com teorias! 
        Eu vejo a desolação e a fome, 
        as angústias sem nome, 
        os pavores marcados para sempre nas faces trágicas 
        das vítimas. 
  
        E sei que vejo, sei que imagino apenas uma ínfima, 
        uma insignificante parcela da tragédia. 
        Eu, se visse, não acreditava. 
        Se visse, dava em louco ou profeta, 
        dava em chefe de bandidos, em salteador de estrada, 
         - mas não acreditava! 
  
        Olho os homens, as casas e os bichos. 
        Olho num pasmo sem limites, 
        e fico sem palavras, 
        na dor de serem homens que fizeram tudo isto: 
        esta pasta ensanguentada a que reduziram a terra inteira, 
        esta lama de sangue e alma, 
        de coisa a ser, 
        e pergunto numa angústia se ainda haverá alguma esperança, 
        se o ódio sequer servirá para alguma coisa... 
  
        Deixai-me chorar - e chorai! 
        As lágrimas lavarão ao menos a vergonha de estarmos vivos, 
        de termos sancionado com o nosso silêncio o crime feito
                                                                                                instituição
        e enquanto chorarmos talvez julguemos nosso o drama, 
        por momentos será nosso um pouco do sofrimento alheio, 
        por um segundo seremos os mortos e os torturados, 
        os aleijados para toda a vida, os loucos e os encarcerados, 
        seremos a terra podre de tanto cadáver, 
        seremos o sangue das árvores, 
        o ventre doloroso das casas saqueadas, 
         - sim, por um momento seremos a dor de tudo isto... 
  
         Eu não sei porque me caem as lágrimas, 
         porque tremo e que arrepio corre dentro de mim, 
         eu que não tenho parentes nem amigos na guerra, 
         eu que sou estrangeiro diante de tudo isto, 
         eu que estou na minha casa sossegada, 
         eu que não tenho guerra à porta, 
          - eu porque tremo e soluço? 
          Quem chora em mim, dizei - quem chora em nós? 
  
          Tudo aqui vai como um rio farto de conhecer os seus meandros:   
         as ruas são ruas com gente e automóveis, 
          não há sereias a gritar pavores irreprimíveis, 
          e a miséria é a mesma miséria que já havia... 
          E se tudo é igual aos dias antigos, 
          apesar da Europa à nossa volta, exangue e mártir, 
          eu pergunto se não estaremos a sonhar que somos gente, 
          sem irmãos nem consciência, aqui enterrados vivos, 
          sem nada senão lágrimas que vêm tarde, e uma noite à volta, 
          uma noite em que nunca chega o alvor da madrugada...

Adolfo Casais Monteiro