sexta-feira, 30 de setembro de 2022

A AURORA DISSOLVE OS MONSTROS - PAUL ELUARD

 

A AURORA DISSOLVE OS MONSTROS

 

Ignoravam

que a beleza do homem é maior do que o homem

 

Viviam para pensar pensavam para se calarem

Viviam para morrer eram inúteis

Ocultavam a sua inocência na morte

 

Tinham posto em ordem

sob o nome de riqueza

sua miséria sua bem-amada

 

Mastigavam flores e sorrisos

Só encontravam um coração na ponta das carabinas

 

Não percebiam a injúria dos pobres

Dos pobres amanhã sem problemas

 

Sonhos sem sol tornavam-nos eternos

Mas para que a nuvem se transformasse em lama

Desciam deixavam de fazer frente ao céu

 

A noite do seu reino a sua morte a sua bela sombra miséria

Miséria para os outros

 

Esqueceremos estes inimigos indiferentes

Em breve uma multidão

Repetirá baixinho a chama clara

A chama para nós dois unicamente paciência

Para nós dois em toda a parte o beijo dos vivos.

 

PAUL ELUARD

(in Algumas das Palavras, traduções de António Ramos Rosa e Luiza Neto Jorge, Publicações Dom Quixote, 1969 / original de Le lit la table, 1944)

 

segunda-feira, 26 de setembro de 2022

Na sombra das coisas - ADONIS, أدونيس (Ali Ahmad Said)

 


Na sombra das coisas

        Gosto de ficar na sombra das coisas
no segredo delas, gosto
de entranhar a criação
de vagar como as ideias
como a arte que se entranha
e, incerto, incauto
renasço a cada dia.

ADONIS, أدونيس ( Ali Ahmad Said )

 


quarta-feira, 21 de setembro de 2022

Saudade - Pablo Neruda

Saudade

Saudade é solidão acompanhada,
é quando o amor ainda não foi embora,
mas o amado já…

Saudade é amar um passado que ainda não passou,
é recusar um presente que nos machuca,
é não ver o futuro que nos convida…

Saudade é sentir que existe o que não existe mais…

Saudade é o inferno dos que perderam,
é a dor dos que ficaram para trás,
é o gosto de morte na boca dos que continuam…

Só uma pessoa no mundo deseja sentir saudade:
aquela que nunca amou.

E esse é o maior dos sofrimentos:
não ter por quem sentir saudades,
passar pela vida e não viver.

O maior dos sofrimentos é nunca ter sofrido.

 

Pablo Neruda

domingo, 18 de setembro de 2022

27 DE JANEIRO - Adam Zagajewski

 

27 DE JANEIRO


Dia gelado. Um sol de inverno. Branco vapor.
Mas nesta sexta-feira não sabíamos
o que celebrar, e o que chorar –
o Dia Memorial do Holocausto
ou o aniversário de Mozart.
Nossa memória ficou perplexa.
A imaginação perdeu o rumo.
No parapeito da janela, uma vela chorou
(fomos convidados a acender velas),
mas a suave música do jovem Mozart
chegou até nós pelos altifalantes, em estilo rococó,
a época das asas de prata e não dos cabelos grisalhos
que conhecíamos de Auschwitz,
idade dos figurinos, e não da nudez,
da esperança, e não do desespero.
Nossa memória ficou perplexa,
a imaginação cresceu, perdida em pensamentos.

 

Adam Zagajewski

sexta-feira, 16 de setembro de 2022

LARVA - Herberto Helder

 


LARVA

Pelo tempo chamado do Outono,
quando a beleza é mais oculta e calma
e na face das coisas pesa o sono
das águas do desejo, fecho a alma
e fico sem estrelas e sem nome.
Humilde, vou tecendo meu destino
futuro de palavras e de fome.
Nesse tempo do Outono meu latino

esplendor é uma cinza paciente.

Meu espírito, um lago verde. Quente,

porém, a gota que leveda ao fundo

do silêncio. Depois serei o Dia,

e com poemas e sangue e alegria

nascerei, incontido, sobre o mundo!...

 

Herberto Helder


sábado, 10 de setembro de 2022

RETRATO DE UMA NOVA IORQUINA Nº 7 - António Amaral Tavares

 

RETRATO DE UMA NOVA IORQUINA Nº 7
(Dorothea Lange. Herald Square, Nova Iorque. 1952)


A roupa é pobre


o cabelo segura-o com o gancho

com que todos os dias prende os sonhos



o olhar atravessa

a rua como se atravessasse um rio


esse olhar não se vê

mas encerra nele uma distância profunda.


António Amaral Tavares





António Amaral Tavares