quinta-feira, 28 de fevereiro de 2013

Itinerário - Papiniano Carlos

Itinerário

Os milhares de anos que passaram
Viram a nossa escravidão.
NÓS carregámos as pedras das pirâmides,
o chicote estalou,
abriu rios de sangue no nosso dorso.
NÓS empunhámos nas galés dos césares
os abomináveis remos
e o chicote estalou de novo na nossa pele.
A terra quemilhares de anos arroteámos
não é nossa,
e NÓS a fecundamos!
E quem abriu as artérias? quem rasgou os pés?
Quem sofreu as guerras? quem apodreceu ao abandono?

quem cerrou os dentes,
quem cerrou os dentes e esperou?

Spartacus voltará: milhões de Spartacus!

Os anos que vêm hão-de ver
a nossa libertação.
Papiniano Carlos

terça-feira, 26 de fevereiro de 2013

Poeta citadino - EDUARDO VALENTE DA FONSECA


Poeta citadino
Talvez vocês não saibam quem foi o Alberto Caeiro,
mas eu vou dizer-vos o que se passa.
Ele era um grande poeta que não tem nada a ver comigo
porque guardava rebanhos e fazia os possíveis para ser simples,
enquanto eu sou um sindicalizado
e faço os
possíveis para não morrer atropelado na cidade.
EDUARDO VALENTE DA FONSECA

segunda-feira, 25 de fevereiro de 2013

O PORTUGAL FUTURO - Ruy Belo



O PORTUGAL FUTURO

O Portugal futuro é um país
aonde o puro pássaro é possível
e sobre o leito negro do asfalto da estrada
as profundas crianças desenharão a giz
esse peixe da infância que vem na enxurrada
e me parece que se chama sável
Mas desenhem elas o que desenharem
é essa a forma do meu país
e chamem elas o que lhe chamarem
portugal será e serei feliz
Poderá ser pequeno como este
ter a oeste o mar e a espanha a leste
tudo nele será novo desde os ramos à raiz
À sombra dos plátanos as crianças dançarão
e na avenida que houver à beira-mar
pode o tempo mudar será verão
Gostaria de ouvir as horas do relógio da matriz
mas isso era o passado e podia ser duro
edificar sobre ele o Portugal futuro
Ruy Belo

domingo, 24 de fevereiro de 2013

Assim como - Alberto Caeiro



Assim Como

Assim como falham as palavras quando querem exprimir qualquer
pensamento,
Assim falham os pensamentos quando querem exprimir qualquer realidade,
Mas, como a realidade pensada não é a dita mas a pensada.
Assim a mesma dita realidade existe, não o ser pensada.
Assim tudo o que existe, simplesmente existe.
O resto é uma espécie de sono que temos, infância da doença.
Uma velhice que nos acompanha desde a infância da doença.

Alberto Caeiro

quinta-feira, 21 de fevereiro de 2013

A Terceira Miséria - Hélia Correia

Dois fragmentos finais

de 

A Terceira Miséria

32.
Estão as praças,
Como ágoras de outrora, estonteadas
Pela concentração dos organismos,
Pelo uso da palavra, a fervilhante
Palavra própria da democracia,
Essa
que dá a volta e ilumina
O
que, por um instante, a empunhou.
Oh, os amigos, os abandonados,
Esses, os destinados ao extermínio,
Esses os belos despojados, nus,
Os
que, mesmo nascendo no Inverno,
Pouco sabem do frio, gente que dorme
Na
sombra do meio-dia, ouvindo o canto
Das
cigarras, o canto sobre o qual
Hesíodo escreveu.
Gente do Sul,
Gente que um dia se desnorteou.
33.
De que armas disporemos, senão destas
Que estão dentro do corpo: o pensamento,
A ideia de polis, resgatada
De
um grande abuso, uma noção de casa
E de
hospitalidade e de barulho
Atrás do qual vem o poema, atrás
Do
qual virá a colecção dos feitos
E
defeitos humanos, um início.
Hélia Correia

quarta-feira, 20 de fevereiro de 2013

A propósito - Vasco Costa Marques

 [retirado do blogue "Poesia dos dias úteis]

A propósito

É o tempo dos lobos
caçarem na cidade
preparando na noite
o abraço da fome



terça-feira, 19 de fevereiro de 2013

A Coisa Pública e a Privada

Affonso Romano Sant’Anna


A Coisa Pública e a Privada
 
Entre a coisa pública
e a
privada
achou-se a
República
assentada.

Uns queriam
privar
da
coisa pública,
outros queriam provar
da
privada,
conquanto, é claro,
que, na provação,
a
privada, publicamente,
parecesse perfumada.

Dessa
luta intestina
entre a gula pública e a privada
a
República
acabou desarranjada
e
ninguém sabia
quando era a empresa pública
privada pública
ou
pública privada.

Assim ia a rês pública: avacalhada
uma
rês pública: charqueada
uma
rês pública, publicamente
corneada,
que por mais
que lhe batessem na cangalha
mais vivia escangalhada.

Qual o jeito?
Submetê-la a
um jejum?
Ou dar purgante à esganada
que embora a prisão de ventre
tinha a pança inflacionada?

O
que fazer?
Privatizar a privada
onde estão todos
publicamente assentados?
Ou publicar, de uma penada,
que a coisa pública
se
deixar de ser privada
pode
ser recuperada?

Sim, é preciso sanear,
desinfetar a coisa pública,
limpar a verba malversada,
dar descarga na privada.

Enfim, acabar com a alquimia
de
empresas públicas-privadas
que querem ver suas fezes
em ouro alheio transformadas.

 
Affonso Romano Sant’Anna