Poema publicado na revista LETRAS BOLIVIANAS (1970),
Canção para os homens sem face
De Manoel de Andrade
para José Macedo de Alencar
Não canto minha dor…
dor de um só homem não é dor que se proclame.
Canto a dor dos homens sem face
canto os que tombaram crivados
os homens escondidos
os que conheceram a nostalgia do exílio
para os encarcerados.
Canto aos párias da vida…
aos bêbados, aos vagabundos e aos toxicómanos.
Canto as prostitutas
e as mulheres que foram embora com o homem amado.
Canto à multidão que entra e sai pelos portões das fábricas
aos que vêem o dia nascer no asfalto das rodovias
e aos lavadores de carros e aos que vendem a lotaria
canto aos colectores de lixo e aos guardiões nocturnos
as longas filas de pessoas que esperam os ônibus nas praças
e aos estrangeiros que aqui vieram viver.
Canto os homens sem raízes, sem família, sem pátria
canto meu sonho quando canto os que viveram o mar
que aportaram em países distantes
e conheceram homens de muitas raças…
e quando canto os navios,
canto ao meu coração de barco.
Gosto de cantar tudo o que vejo
os homens que conheço
e os que ainda não começaram a existir para mim.
Gosto de caminhar sozinho e de mãos nos bolsos pelas ruas e pela vida
gosto de falar com os homens dos armazéns
dos mercados, das oficinas,
dos postos de gasolina,
das bancas de revistas, das agências de viagens,
com os ascensoristas, com os que consertam os esgotos da cidade,
e outros homens, outros.
E canto as crianças que brincam nos parques
e pulam corda nas calçadas
e os que vão ao palco representar o drama dos outros homens.
Eu canto para todos os homens…
meus irmãos em todas as raças, nacionalidades e crenças,
canto além de todas as fronteiras
porque sob a bandeira da paz eu canto;
e pela fé que me ilumina
e por essa canção escrita no meu peito,
eu canto a humanidade inteira.
Canto a vergonha de ser brasileiro num tempo defecado
canto meu povo
e se ainda não canto meu país,
é porque não sei cantar na presença de homens indecentes;
eu canto sobretudo para aqueles que preservaram seu sonho,
para os que ousaram lutar e morrer por ele,
canto a memória de um guerrilheiro argentino.
E eis que meu verso se endurece
para que eu cante meu melhor combate
e só assim posso cantar para os irmãos e camaradas
recrutando companheiros para a luta…
e quando meu canto é feito para os ouvidos dos justos,
eu canto sem temor,
para que minha canção palpite solitária e solidária
no coração daqueles que se preservaram da lama.
Canto sem medo e sem brinquedo
e enfileiro meus versos para a luta prontos para ferir como baionetas
prontos a morrer se for preciso.
Como guerreiros invisíveis
meus versos se infiltrarão no país dos corruptos pelas fronteiras das entrelinhas
e renascerão nos lábios dos militantes
ora como uma flor, ora como um fuzil.
Ah, que tempos são esses!?
já não reconheço nestes versos os versos de poeta que fui;
meu canto é hoje um canto transtornado pelo pacto desumano dos homens,
pelo triste dever de indignar-se,
pela violência estampada nas manchetes dos jornais…
e eis que um poeta não canta sem que seu verso quase desfaleça.
E hoje…
nestes dias encardidos de actos e decretos,
neste tempo suspenso num mastro sem bandeiras,
nesta nação de homens que ingerem caldo de galinha,
neste momento tísico
em que somente os finórios se regozijam,
nestes anos em que o sangue da América é um imenso canto de esperanças,
este poema chega assim tão de repente
rogando uma audiência para falar comigo,
como se soubesse que estou para morrer,
e me encontra prostrado num bacanal de coisas fúteis,
um inconsciente talvez…
um homem inútil
quase um desertor
meu Deus, quase um desertor.
Ah, meus versos
minha absolvição…
neles renasço transfigurado e forte
e cavalgo o universo inteiro;
e caminho cheio de amor por todos os seres
e por todas as coisas;
cheio de asco pelos tiranos
e pelos homens hipócritas
e sinto o coração limpo e maciço de ternura
meu canto crescer e explodir mais forte que a bomba.
Ah, meus versos,
meus versos que não são meus,
que são de todos os homens e de todas as mulheres que eu canto;
que são de todos os que se aproximam de mim
e que falam comigo.
Meus versos que afinal nunca serão de ninguém,
caminhando pela terrível solidão branca do papel,
pelo itinerário clandestino das gavetas;
estampados nas palavras escarlates da minha revolta pública,
impressos no meu olhar solitário de samurai.
Eu canto para todos os homens
contudo, neste tempo,
eu canto para os homens sem face…
aqueles que se perdem na multidão das grandes cidades,
e que amadurecem, a cada dia,
os punhos para a luta.
Curitiba 1968
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