Vou contarparavocês umcasoque sucedeu na Paraíba do Norte comumhomemque se chamava Pedro João Boa-Morte, lavrador de Chapadinha: talvez tenha morte boa porquevidaelenãotinha.
Sucedeu na Paraíba mas é uma históriabanal emtodoaqueleNordeste. Podia serem Sergipe, Pernambuco ou Maranhão, quetodocabra da peste ali se chama João Boa-Morte, vida-não.
Morava João nas terras de umcoronelmuitorico. Tinhamulher e seisfilhos, umcãoque chamava "Chico", umfacão de cortarmato, umchapéu e umtico-tico.
Trabalhava noite e dia nas terras do fazendeiro. Mal dormia, mal comia, mal recebia dinheiro; se recebia não dava praacender o candeeiro. João não sabia como fugir desse cativeiro.
Olhava pras seiscrianças de olhoscavados de fome, já consumindo a infância na durafaina da roça. Sentia umnó na garganta. Quando uma delas almoça, as outras não; a quejanta, no outrodianãoalmoça.
Olhava para Maria, suamulher, que a tristeza na luta de tododia tãodepressa envelheceu. Perdera toda a alegria, perdera toda a beleza e eratãobela no dia emque João a conheceu!
Quediabo tem nesta terra, neste Nordestemaldito, quematacomo uma guerra tudo o que é bom e bonito? Assim João perguntava parasimesmo, e lembrava que a talguerranão matava o Coronel Benedito!
Essa guerra no Nordeste nãomataquem é doutor. Nãomatadono de engenho, sómatacabra da peste, sómata o trabalhador.
O dono do engenho engorda, viralogosenador. Não faz umanoque os homens que trabalham na fazenda do Coronel Benedito tiveram comeleatrito devido ao preço da venda. O preço do anopassado jáerabaixo e no entanto o coronelnão quis dar o novopreço ajustado.
João e seuscompanheiros não gostaram da proeza: se o novopreçonão dava paragarantir a mesa, aceitarpreçomaisbaixo jáeramuitafraqueza. "Não vamos voltaratrás. Precisamos de dinheiro. Se o coronelnão der mais, vendemos nossoproduto paraoutrofazendeiro."
Com o coronel foram ter. Masquando comunicaram que a outro iam vender o cerealque plantaram, o coronel respondeu: "Ainda está pranascer umcabraprafazerisso. Aqueleque se atrever pode rezar, vai morrer, vai tomarchá de sumiço."
O pessoal se assustou. Sabiam quefazendeiro nãobrincacomlavrador. Se quem obedece morre de fome, e de desespero, quemnão obedece corre ouvira "cabramorredor".
Sóum deles se atreveu a venderseucereal. Noutra fazenda vendeu mas vendeu e se deu mal. Dormiu masnão amanheceu. Foram encontrá-lo enforcado de manhã num pé de pau. Debaixo do morto estava um "cabra" do coronel que dizia a quem passava:
"Estemolequemaldito pensou que desrespeitava o que o patrãotinhadito. Todaplantaqueaqui nasce é planta do coronel. Elemanda nesta terra comoDeusmanda na céu. Quem estiver descontente acho melhornãofalar ou fale e depois se agüente queeumesmo venho enforcar."
João ficou revoltado comaquelecrimesemnome. Maria disse: "cuidado nãote mete comessehomem". João respondeu zangado: "Antesmorrer enforcado do quesucumbir de fome."
Nisso pensando, João falou comseuscompanheiros: "Lavradores, meusirmãos, esta nossaescravidão tem queterumparadeiro. Não temos terranempão, vivemos num cativeiro. Livremos nossosertão do jugo do fazendeiro."
O Coronel Benedito quando soube que João taiscoisas havia dito, ficou brabocomo o Cão. Armou dois "cabras" e disse: "João Boa-Morte não presta. Não quero nas minhasterras caboclometido a besta.
"Vou lhedar uma lição. Elequerterra, não é? Pois vai ganhar o sertão! Vai terqueandar a pé desdeaqui ao Maranhão. Quandovirarvagabundo, terá de baixar a crista. Vou avisartodomundo queesse 'cabra' é comunista. Quem mexe com Benedito bemcaro tem quepagar. Ninguémlhe dará umpalmo de terrapratrabalhar."
Se assim disse assim fez. João foi mandadoembora do seucasebrepacato. Disse a Maria: "Nãochora, todo o patrão é ingrato." E saíram mundoafora. Ele, Maria, os seisfilhos e o facão de cortarmato.
Andaram o resto do dia e quando a noite caía chegaram numa fazenda: "Seudoutor, tenho família, sou homemtrabalhador. Mecedaumpalmo de terra praeutrabalhar pro senhor."
Ao que o doutor respondeu: "Terraaqui tenho sobrando, todoesse baixão é meu. Se planta e colhe num dia, pode ficar trabalhando."
"Seucoronel, me desculpe, maseunão sei fazerisso. Quemplanta e colhe num dia, nãoplanta, faz é feitiço." "Nesse caso, não discuta, acho melhorir andando."
E lá se foi Boa-Morte com a mulher e seismeninos "Talvezeu tenha maissorte na fazenda dos Quintinos." Andaram rumo ao Norte, paraalém da várzea dos Sinos: "Coronel, morro de fome comseisfilhos e a mulher. Medêtrabalho, sou homem para o que der e vier."
E o coronel respondeu: "Trabalho tenho de sobra. E se é homemcomo diz quero queme faça agora essa raizvirarcobra e depoisvirarraiz. Se issonão faz, vá-se embora."
João saiu com a família num desesperosemnome. Ele, os filhos e Maria estavam mortos de fome. Quedestino tomaria? Onde iria trabalhar? E à suavoltaelevia terra e maisterravazia, milho e cana a verdejar.
O sol do sertão ardia sobre os oito a caminhar. Semesperança de umdia terumcantopraficar, à suavoltaelevia terra e maisterravazia, milho e cana a verdejar.
E assim, diaapósdia, andaram os oito a vagar, com uma fomeque doía fazendo os filhoschorar. Mas o quemaislhe doía era, comfome e semlar, vertantaterravazia, tantacana a verdejar!
Eraverterra e vergente daquele mesmolugar, amigos, quaseparentes, quenão podiam ajudar, que se lhes dessem pousada caro tinham quepagar. O que o patrão ordena é bomnãocontrariar.
A muitas fazendas foram, sempre o mesmoresultado. Mundico, o filhomaismoço, parecia condenado. Prarespirareraumesforço, só andava carregado. "Mundico, tu tá me ouvindo?" Mundico estava calado.
Mundico estava morrendo, coraçãoquase parado. Deitaram o pobre no chão, no chãocomtodo o cuidado. Deitaram e ficaram vendo morrer o pobrecoitado.
"Meufilho", gritou João, se abraçando com o menino. Mas de Mundico restava semente o corpofranzino. Corpoquenão precisava maisnem de painem de pão, que precisava de chão que dele não precisava.
Enquantoissoaliperto, detrás de uma ribanceira, três "cabras" comtirocerto matavam Pedro Teixeira, homem de dedicação que lutara a vidainteira contra aquela exploração.
Pedro Teixeira lutara ao lado de Julião, falando aos caboclospara darmelhorcompreensão e uma Liga organizara pralutarcontra o patrão, praacabarcom o cativeiro que existe na região, que conduz ao desespero toda uma população, ondesó o fazendeiro tem dinheiro e opinião.
Essa não foi a primeira mortefeita de encomenda contralídercamponês. Outros foram assassinados pelosdonos da fazenda. Mascada Pedro Teixeira que morre, logo aparece maisum, maisquatro, maisseis - que a lutanão esmorece e cresce maiscadamês.
Que a lutanão esmorece agoraque o camponês cansado de fazerprece e de votaremburguês, se ergue contra a pobreza e outravozjánãoescuta, só a que o chamapraluta - voz da Liga Camponesa.
Mas João nada sabia no desesperoque estava, andando aquelecaminho ondeninguém o queria. João Boa-Morte pensava que se encontrava sozinho quesozinho morreria.
Sozinhocomcincofilhos e suapobre Maria emcujosolhos o brilho da morte se refletia. Jánão havia esperança, iam sucumbir de fome, ele, Maria e as crianças.
Naquela terraquerida, queerasua e quenãoera, onde sonhara com a vida masnuncaviverpudera, ia morrersemcomida aquele de cujalida tantacomida nascera.
Aquele de cujamão tantasemente brotara que, filho daquele chão, aquelechão fecundara; e assim se fizera homem paraagora, comoumcão, morrer, com os filhos, de fome.
E assim foi que Boa-Morte, quando chegou a Sapê, desiludido da sorte, certoque naquele dia antes da auroranascer os seusfilhos mataria e mataria a mulher, depois se suicidaria paraacabar de sofrer.
Tomada essa decisão sentiu que uma paz sofrida brotava emseucoração. Era uma planta perdida, uma flor de maldição nascendo de suamão quesempre plantara a vida.
Seusolhos se encheram dágua. Nada podia fazer. Paraquem vive na mágoa, mágoamenor é morrer. Quesentido tem a vida praquemnão pode viver? Praquem, plantando e colhendo, não tem direito a comer? Praqueterfilhos, se os filhos na misériavãomorrer? É preferível matá-los aqueleque os fez nascer.
Chegando a um lugar-deserto, pararam paradormir. Deitaram todos no chão semnadaparacobrir. Quando dormiam, João levantou-se devagar pegando logo o facão comque os ia degolar.
João se julgava sozinho perdido na escuridão semterninguémpra ajudá-lo naquela situação. Semamigo e semcarinho amolava o seufacão paramatar a família e vararseucoração.
Mascomoumloucoatrás dele andava Chico Vaqueiro umlavradorcomoele comoelesemdinheiro para levá-lo praLiga e lhedarumparadeiro paraqueassimele siga o caminhoverdadeiro.
Para dizer-lhe que a luta sóagora vai começar, queelenão estava sozinho não devia se matar. Devia se unir aos outros paracom os outroslutar. Emvez de matar o filho, devia era os libertar do jugo do fazendeiro quejácomeça a findar.
E antesque Boa-Morte, levadopelaaflição, emseispeitosdiferentes varasse seucoração, Chico Vaqueiro chegou: "Compadre, não faça isso, nãomatequem é inocente. O inimigo da gente - lhe disse Chico Vaqueiro - nãosão os nossosparentes, o inimigo da gente é o coronelfazendeiro.
"O inimigo da gente é o latifundiário que submete nóstodos a essecruelcalvário. Pense umpouco, meuamigo, não vá seusfilhosmatar. É contraaqueleinimigo quenós devemos lutar. Queculpa têm os seusfilhos? Culpa de tantopenar? Vamos mudar o sertão pravida deles mudar."
Enquanto Chico falava, no rostomagro de João uma luznova chegava. E já a aurora, do chão de Sapê, se levantava.
E assim se acaba uma parte da história de João. A outraparte da história vai tendo continuação não neste palco de rua mas no palco do sertão. Os personagenssãomuitos e muita a suaaflição. Jávãotodos compreendendo, como compreendeu João, que o camponês vencerá pelaforça da união. Que é entrando para as Ligas queelederrota o patrão, que o caminho da vitória está na revolução.
Ferreira Gullar
(Gullar, Ferreira. Todapoesia (1950-1999). Rio de Janeiro: José Olympio, 2001; 11 edição)
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