terça-feira, 9 de março de 2010

Ferreira Gullar - Joao Boa-Morte



João Boa-Morte
Cabra Marcado Pra Morrer

Vou contar para vocês
um caso que sucedeu
na Paraíba do Norte
com um homem que se chamava
Pedro João Boa-Morte,
lavrador de Chapadinha:
talvez tenha morte boa
porque vida ele não tinha.

Sucedeu na Paraíba
mas é uma história banal
em todo aquele Nordeste.
Podia ser em Sergipe,
Pernambuco ou Maranhão,
que todo cabra da peste
ali se chama João
Boa-Morte, vida-não.

Morava João nas terras
de um coronel muito rico.
Tinha mulher e seis filhos,
um cão que chamava "Chico",
um facão de cortar mato,
um chapéu e um tico-tico.

Trabalhava noite e dia
nas terras do fazendeiro.
Mal dormia, mal comia,
mal recebia dinheiro;
se recebia não dava
pra acender o candeeiro.
João não sabia como
fugir desse cativeiro.

Olhava pras seis crianças
de olhos cavados de fome,
consumindo a infância
na dura faina da roça.
Sentia um na garganta.
Quando uma delas almoça,
as outras não; a que janta,
no outro dia não almoça.

Olhava para Maria,
sua mulher, que a tristeza
na luta de todo dia
tão depressa envelheceu.
Perdera toda a alegria,
perdera toda a beleza
e era tão bela no dia
em que João a conheceu!

Que diabo tem nesta terra,
neste Nordeste maldito,
que mata como uma guerra
tudo o que é bom e bonito?
Assim João perguntava
para si mesmo, e lembrava
que a tal guerra não matava
o Coronel Benedito!

Essa guerra no Nordeste
não mata quem é doutor.
Não mata dono de engenho,
mata cabra da peste,
mata o trabalhador.

O dono do engenho engorda,
vira logo senador.
Não faz um ano que os homens
que trabalham na fazenda
do Coronel Benedito
tiveram com ele atrito
devido ao preço da venda.
O preço do ano passado
era baixo e no entanto
o coronel não quis dar
o novo preço ajustado.

João e seus companheiros
não gostaram da proeza:
se o novo preço não dava
para garantir a mesa,
aceitar preço mais baixo
era muita fraqueza.
"Não vamos voltar atrás.
Precisamos de dinheiro.
Se o coronel não der mais,
vendemos nosso produto
para outro fazendeiro."

Com o coronel foram ter.
Mas quando comunicaram
que a outro iam vender
o cereal que plantaram,
o coronel respondeu:
"Ainda está pra nascer
um cabra pra fazer isso.
Aquele que se atrever
pode rezar, vai morrer,
vai tomar chá de sumiço."

O pessoal se assustou.
Sabiam que fazendeiro
não brinca com lavrador.
Se quem obedece morre
de fome, e de desespero,
quem não obedece corre
ou vira "cabra morredor".

um deles se atreveu
a vender seu cereal.
Noutra fazenda vendeu
mas vendeu e se deu mal.
Dormiu mas não amanheceu.
Foram encontrá-lo enforcado
de manhã num de pau.
Debaixo do morto estava
um "cabra" do coronel
que dizia a quem passava:

"Este moleque maldito
pensou que desrespeitava
o que o patrão tinha dito.
Toda planta que aqui nasce
é planta do coronel.
Ele manda nesta terra
como Deus manda na céu.
Quem estiver descontente
acho melhor não falar
ou fale e depois se agüente
que eu mesmo venho enforcar."

João ficou revoltado
com aquele crime sem nome.
Maria disse: "cuidado
não te mete com esse homem".
João respondeu zangado:
"Antes morrer enforcado
do que sucumbir de fome."

Nisso pensando, João
falou com seus companheiros:
"Lavradores, meus irmãos,
esta nossa escravidão
tem que ter um paradeiro.
Não temos terra nem pão,
vivemos num cativeiro.
Livremos nosso sertão
do jugo do fazendeiro."

O Coronel Benedito
quando soube que João
tais coisas havia dito,
ficou brabo como o Cão.
Armou dois "cabras" e disse:
"João Boa-Morte não presta.
Não quero nas minhas terras
caboclo metido a besta.

"Vou lhe dar uma lição.
Ele quer terra, não é?
Pois vai ganhar o sertão!
Vai ter que andar a
desde aqui ao Maranhão.
Quando virar vagabundo,
terá de baixar a crista.
Vou avisar todo mundo
que esse 'cabra' é comunista.
Quem mexe com Benedito
bem caro tem que pagar.
Ninguém lhe dará um palmo
de terra pra trabalhar."

Se assim disse assim fez.
João foi mandado embora
do seu casebre pacato.
Disse a Maria: "Não chora,
todo o patrão é ingrato."
E saíram mundo afora.
Ele, Maria, os seis filhos
e o facão de cortar mato.

Andaram o resto do dia
e quando a noite caía
chegaram numa fazenda:
"Seu doutor, tenho família,
sou homem trabalhador.
Me ceda um palmo de terra
pra eu trabalhar pro senhor."

Ao que o doutor respondeu:
"Terra aqui tenho sobrando,
todo esse baixão é meu.
Se planta e colhe num dia,
pode ficar trabalhando."

"Seu coronel, me desculpe,
mas eu não sei fazer isso.
Quem planta e colhe num dia,
não planta, faz é feitiço."
"Nesse caso, não discuta,
acho melhor ir andando."

E se foi Boa-Morte
com a mulher e seis meninos
"Talvez eu tenha mais sorte
na fazenda dos Quintinos."
Andaram rumo ao Norte,
para além da várzea dos Sinos:
"Coronel, morro de fome
com seis filhos e a mulher.
Me trabalho, sou homem
para o que der e vier."

E o coronel respondeu:
"Trabalho tenho de sobra.
E se é homem como diz
quero que me faça agora
essa raiz virar cobra
e depois virar raiz.
Se isso não faz, vá-se embora."

João saiu com a família
num desespero sem nome.
Ele, os filhos e Maria
estavam mortos de fome.
Que destino tomaria?
Onde iria trabalhar?
E à sua volta ele via
terra e mais terra vazia,
milho e cana a verdejar.

O sol do sertão ardia
sobre os oito a caminhar.
Sem esperança de um dia
ter um canto pra ficar,
à sua volta ele via
terra e mais terra vazia,
milho e cana a verdejar.

E assim, dia após dia,
andaram os oito a vagar,
com uma fome que doía
fazendo os filhos chorar.
Mas o que mais lhe doía
era, com fome e sem lar,
ver tanta terra vazia,
tanta cana a verdejar!

Era ver terra e ver gente
daquele mesmo lugar,
amigos, quase parentes,
que não podiam ajudar,
que se lhes dessem pousada
caro tinham que pagar.
O que o patrão ordena
é bom não contrariar.

A muitas fazendas foram,
sempre o mesmo resultado.
Mundico, o filho mais moço,
parecia condenado.
Pra respirar era um esforço,
andava carregado.
"Mundico, tume ouvindo?"
Mundico estava calado.

Mundico estava morrendo,
coração quase parado.
Deitaram o pobre no chão,
no chão com todo o cuidado.
Deitaram e ficaram vendo
morrer o pobre coitado.

"Meu filho", gritou João,
se abraçando com o menino.
Mas de Mundico restava
semente o corpo franzino.
Corpo que não precisava
mais nem de pai nem de pão,
que precisava de chão
que dele não precisava.

Enquanto isso ali perto,
detrás de uma ribanceira,
três "cabras" com tiro certo
matavam Pedro Teixeira,
homem de dedicação
que lutara a vida inteira
contra aquela exploração.

Pedro Teixeira lutara
ao lado de Julião,
falando aos caboclos para
dar melhor compreensão
e uma Liga organizara
pra lutar contra o patrão,
pra acabar com o cativeiro
que existe na região,
que conduz ao desespero
toda uma população,
onde o fazendeiro
tem dinheiro e opinião.

Essa não foi a primeira
morte feita de encomenda
contra líder camponês.
Outros foram assassinados
pelos donos da fazenda.
Mas cada Pedro Teixeira
que morre, logo aparece
mais um, mais quatro, mais seis
- que a luta não esmorece
e cresce mais cada mês.

Que a luta não esmorece
agora que o camponês
cansado de fazer prece
e de votar em burguês,
se ergue contra a pobreza
e outra voz não escuta,
a que o chama pra luta
- voz da Liga Camponesa.

Mas João nada sabia
no desespero que estava,
andando aquele caminho
onde ninguém o queria.
João Boa-Morte pensava
que se encontrava sozinho
que sozinho morreria.

Sozinho com cinco filhos
e sua pobre Maria
em cujos olhos o brilho
da morte se refletia.
não havia esperança,
iam sucumbir de fome,
ele, Maria e as crianças.

Naquela terra querida,
que era sua e que não era,
onde sonhara com a vida
mas nunca viver pudera,
ia morrer sem comida
aquele de cuja lida
tanta comida nascera.

Aquele de cuja mão
tanta semente brotara
que, filho daquele chão,
aquele chão fecundara;
e assim se fizera homem
para agora, como um cão,
morrer, com os filhos, de fome.

E assim foi que Boa-Morte,
quando chegou a Sapê,
desiludido da sorte,
certo que naquele dia
antes da aurora nascer
os seus filhos mataria
e mataria a mulher,
depois se suicidaria
para acabar de sofrer.

Tomada essa decisão
sentiu que uma paz sofrida
brotava em seu coração.
Era uma planta perdida,
uma flor de maldição
nascendo de sua mão
que sempre plantara a vida.

Seus olhos se encheram dágua.
Nada podia fazer.
Para quem vive na mágoa,
mágoa menor é morrer.
Que sentido tem a vida
pra quem não pode viver?
Pra quem, plantando e colhendo,
não tem direito a comer?
Pra que ter filhos, se os filhos
na miséria vão morrer?
É preferível matá-los
aquele que os fez nascer.

Chegando a um lugar-deserto,
pararam para dormir.
Deitaram todos no chão
sem nada para cobrir.
Quando dormiam, João
levantou-se devagar
pegando logo o facão
com que os ia degolar.

João se julgava sozinho
perdido na escuridão
sem ter ninguém pra ajudá-lo
naquela situação.
Sem amigo e sem carinho
amolava o seu facão
para matar a família
e varar seu coração.

Mas como um louco atrás dele
andava Chico Vaqueiro
um lavrador como ele
como ele sem dinheiro
para levá-lo pra Liga
e lhe dar um paradeiro
para que assim ele siga
o caminho verdadeiro.

Para dizer-lhe que a luta
agora vai começar,
que ele não estava sozinho
não devia se matar.
Devia se unir aos outros
para com os outros lutar.
Em vez de matar o filho,
devia era os libertar
do jugo do fazendeiro
que começa a findar.

E antes que Boa-Morte,
levado pela aflição,
em seis peitos diferentes
varasse seu coração,
Chico Vaqueiro chegou:
"Compadre, não faça isso,
não mate quem é inocente.
O inimigo da gente
- lhe disse Chico Vaqueiro -
não são os nossos parentes,
o inimigo da gente
é o coronel fazendeiro.

"O inimigo da gente
é o latifundiário
que submete nós todos
a esse cruel calvário.
Pense um pouco, meu amigo,
nãoseus filhos matar.
É contra aquele inimigo
que nós devemos lutar.
Que culpa têm os seus filhos?
Culpa de tanto penar?
Vamos mudar o sertão
pra vida deles mudar."

Enquanto Chico falava,
no rosto magro de João
uma luz nova chegava.
E a aurora, do chão
de Sapê, se levantava.

E assim se acaba uma parte
da história de João.
A outra parte da história
vai tendo continuação
não neste palco de rua
mas no palco do sertão.
Os personagens são muitos
e muita a sua aflição.
vão todos compreendendo,
como compreendeu João,
que o camponês vencerá
pela força da união.
Que é entrando para as Ligas
que ele derrota o patrão,
que o caminho da vitória
está na revolução.

Ferreira Gullar

(Gullar, Ferreira. Toda poesia (1950-1999). Rio de Janeiro: José Olympio, 2001; 11 edição)



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