sexta-feira, 12 de março de 2010

Manoel de Andrade - LIBERDADE



LIBERDADE

Bandeira mutilada

onde enrolaste um coração de pássaro.

Se foi para abafar o canto

e a voz de um povo,

pois que se faça amiga da revolta.

Liberdade

é o teu nome

e toada dos companheiros em marcha.

Primeiro tu foste a inocência

correndo pelas areias ensolaradas do meu mar,

correndo no pátio dos recreios

no bairro operário onde vivi

e na praça principal da minha infância.

Depois foste minha rebelde bandeira

e a mágica certeza na adolescência do meu ser.

Tu me trouxeste a paixão e a fantasia

e aquele sonho imenso de ser marinheiro um dia.

Mais tarde

a história me mostrou que era ainda maior tua beleza,

e me ensinou a escrever teu nome

na saga gloriosa de Espártaco,

no martírio heróico de Tupac Amaru e de Caupolican

e no exemplo imperecível dos Inconfidentes.

E assim… de busca em busca,

na biografia dos heróis,

pelas páginas da poesia

e pela verve da eloquência,

tu te abriste, dia a dia, como uma rosa no meu peito

e depois, quando a pátria cavou suas trincheiras,

como um corcel de luz,

ressurgiste na aldeia de minh’alma,

com teu galope indomável

tua resistência

teu rastro clandestino

e me trouxeste tuas cicatrizes

tuas amarras rompidas

e o teu sonho inabalável.

E desde então marcho nos teus passos

e éramos dez, éramos cem, éramos mil

e eras então o ar com que respiravam os ideais de um povo inteiro

e no coração do nordestino eras a esperança do pão,

da água e da terra repartida.

Eras tu que no sul comandavas a greve,

o comício e a passeata

cantávamos contigo a canção popular

eras tu que inspiravas a arte, o teatro e a poesia

tu eras em toda a nação a véspera de um amanhecer inadiável.

Subitamente…

te atiraram ao chão

e te pisaram…

te torturaram e te baniram.

E como Prometeu,

foste acorrentada a estes anos de martírio,

onde uma hierarquia de abutres se sucede e te devora;

e sentimos em nossas entranhas

a tua própria entranha devorada.

Um murmúrio apenas é hoje o teu nome na solidão da pátria

uma legião de sombras te observa

segue teus passos

te vigia nas ruas, nas casas, nas escolas, nas fábricas

mil línguas mercenárias delatam os que te pronunciam

teus lábios de rocio… há sete anos amordaçados

tua boca bebendo a taça do tormento

teus punhos algemados

teu corpo flagelado

teu nome silenciado com o grito dos caídos.

Liberdade, liberdade

um pedaço de ti sobrevive aqui,

na intimidade e no lirismo do meu canto.

Em alguma parte da América,

por essas terras e montes,

apesar dos meus pesares,

cantam os rios e cantam as fontes

mas eu canto a negra angústia

por teu sangueliberdade

na minha pátria ferida.

.

Liberdade, liberdade

suprema promessa da esperança

tu serás ainda a terra por inteira repartida,

os campos finalmente semeados

e o nosso sonho a dançar nas espigas onduladas pelo vento.

Na imorredoura certeza do amanhã

renascerás como raiz ardente;

e no seio de uma primavera palpitante

tu crescerás como uma árvore de beijos

para seduzir os homens, as aves e as estrelas

e, flor da insurreição

irás desabrochar no retalhado coração dos oprimidos.

Liberdade, liberdade

lâmpada do abismo, estandarte de luz,

melodia do vento na rota das aves peregrinas,

barca misteriosa do destino

a singrarsempre a singrar

formosa e impassível em busca do amanhecer.

Liberdade, liberdade

Tu és o tribunal na consciência dos tiranos

dos oprimidos és o baluarte e a véspera da vitória

O sonho americano de Bolívar foi escrito com teu nome,

porque tu és a fonte, o cântaro, a água que embriaga,

sede perene da alma, da vida tu és a dádiva suprema.

Foste a tribuna dos abolicionistas

e assinaste a glória da pátria com a mão de uma princesa

és o hino dos militantes, o cântico triunfal, delírio

bandeira dos Inconfidentes, ainda que tardia

liberdade, ó liberdade

meu único amor

meu peito de viola te entoa enamorado.

Liberdade… ó liberdade

hoje somos apenas os guardiões de um sonho

os que sustentamos em tantas pátrias a bandeira da bravura

hoje somos os guerreiros do silêncio

para que teu hino possa ser entoado com alegria pelos filhos do amanhã.

Cidade do México, Fevereiro de 1971

Manoel de Andrade


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