terça-feira, 24 de janeiro de 2012

Entrevista

Vi, revi e tornei a ver, a entrevista feita por Mário Crespo a Arménio Carlos que, além do conteúdo, apresenta duas posturas distintas.

O entrevistador surge-nos acaçapado, de verbo untuoso de onde escorrem vocábulos de emboscada, frases viperinas e as clássicas questões extraídas de velhas sebentas ideológicas desfasadas da realidade. Procurando de modo sibilino, mas sem resultado, enredar o entrevistado, Crespo incorpora a imagem de alguém que leva um recado e não se sente à-vontade ao enfrentar o destinatário. Um Crespo crispado, deitando óleo no seu desconforto para refrear a encrespação.

O entrevistado é alguém que pela fisionomia e postura física manifesta a vontade de ir à peleja. Responde com fluência e convicção, investe e toma o lugar do entrevistador obrigando-o a aceitar os seus argumentos.

Arménio Carlos representa e responde pela classe a que pertence. Os trabalhadores têm nas suas estruturas de classe quadros conhecedores e combativos.
Não estão sós.

sexta-feira, 20 de janeiro de 2012

Os Ninguém - Eduardo Galeano


"A utopia está lá no horizonte.
Me aproximo dois passos, ela se afasta dois passos.
Caminho dez passos e o horizonte corre dez passos.
Por mais que eu caminhe, jamais a alcançarei.
Para que serve a utopia?
Serve para isso: para que eu não deixe de caminhar."

* * *

Os Ninguém


As pulgas sonham com comprar um cão, e os ninguém com deixar a pobreza, que em algum dia mágico a sorte chova de repente, que chova a boa sorte a cântaros; mas a boa sorte não chove ontem, nem hoje, nem amanhã, nem nunca, nem uma chuvinha cai do céu da boa sorte, por mais que os ninguém a chamem e mesmo que a mão esquerda coce, ou se levantem com o pé direito, ou comecem o ano mudando de vassoura.

Os ninguém: os filhos de ninguém, os dono de nada.
Os ninguém: os nenhuns, os desprezados, correndo soltos, morrendo a vida, fodidos e refodidos.
Que não são embora sejam.
Que não falam idiomas, mas dialetos.
Que não professam religiões, mas superstições.
Que não fazem arte, mas artesanato.
Que não praticam cultura, mas folclore

Que não são seres humanos, mas recursos humanos.
Que não têm cara, mas braços.
Que não têm nome, mas número.
Que não aparecem na história universal, mas nas páginas policiais da imprensa local.
Os ninguém, que custam menos que a bala que os mata.

Eduardo Galeano


LOS NADIE

Los nadie: los hijos de nadie, los dueños de nada.
Los nadie: los ningunos, los ninguneados, corriendo la liebre,
muriendo la vida, jodidos, rejodidos.
Que no son, aunque sean.
Que no hablan idiomas, sino dialectos.
Que no profesan religiones, sino supersticiones.
Que no hacen arte, sino artesanía.
Que no practican cultura, sino folklore.
Que no son seres humanos, sino recursos humanos.
Que no tienen cara, sino brazos.
Que no tienen nombre, sino número.
Que no figuran en la historia universal, sino en la crónica roja de la
prensa local.
Los nadie, que cuestan menos que la bala que los mata.”

quinta-feira, 12 de janeiro de 2012

ACONTECIMENTOS - Jacques Prévert

Jacques Prévert

ACONTECIMENTOS

(extrato)

(Publicado em Les Cahiers G.L.M. em 1937)

(Tradução de Manuela Torres)

Uf!

não devemos ficar abatidos

temos de resistir

e comer

as moscas chupam

as andorinhas comem os dentes-de-leão

a família come a mortadela

o assassino come um molho de rabanetes

o motorista de táxi, na central dos motoristas,

rua Tolbiac,

come um bife de cavalo

toda a gente come menos os mortos

toda a gente come

os pederastas… as andorinhas

as girafas… os coronéis…

toda a gente come

menos o desempregado

o desempregado não come porque não tem nada para comer

está sentado no passeio

está cansado

esperamuito tempo que as coisas mudem

e começa a estar farto

de súbito levanta-se

e vai-se embora

à procura dos outros

dos outros

dos outros que não comem porque não têm nada para comer

dos outros muito cansados

dos outros sentados no passeio

e que esperam

que esperam que as coisas mudem e que estão fartos

e que vão à procura dos outros

todos os outros

todos os outros fartos e cansados

cansados de esperar

cansados…

Olhem, diz a andorinha aos filhos

são milhares deles

e os passarinhos põem a cabeça fora do ninho

e vêem os homens marchar

Se eles se mantiverem unidos

conseguirão comer

diz a andorinha

mas se se separarem irão morrer

Mantenham-se unidos, homens pobres

mantenham-se unidos,

gritam as pequenas andorinhas.

Mantenham-se unidos,

gritam os passarinhos

alguns homens ouvem-nos

saúdam com o punho

e sorriem.

* * *

Ouf

il ne faut pas se laisser abattre

il faut se soutenir

manger

les mouches lapent

les petits de l’hirondelle mangent le pissenlit

la famille la mortadelle

l’assassin une bote de radis

le chauffeur de taxi au rendez-vous des chauffeurs

rue de Tolbiac

mange une escalope de cheval

tout le monde mange sauf les morts

tout le monde mange

les pédérastes… les hirondelles…

les girafes… les colonels…

tout le monde mange

sauf le chômeur

le chômeur qui ne mange pas parce qu’il n’a rien à manger

il est assis sur le trottoir

il est très fatigué

depuis le temps qu’il attend que ça change

il commence à en avoir assez

soudain il se lève

soudain il s’en va

à la recherche des autres

des autres

des autres qui ne mange pas parce qu’ils n’ont rien à manger

des autres tellement fatigués

des autres assis sur les trottoirs

et qui attendent

qui attendent que ça change et qui en ont assez

et qui s’en vont à la recherche des autres

tous les autres

tous les autres tellement fatigués

fatigués d’attendre

fatigués…

Regardez dit l’hirondelle à ses petits

ils sont des milliers

et les petits passent la tête hors du nid

et regardent les hommes marcher

S’ils restent bien unis ensemble

ils mangeront

dit l’hirondelle

mais s’ils se séparent ils crèveront

Restez ensemble hommes pauvres

restez unis

crient les petits de l’hirondelle

restez ensemble hommes pauvres

restez unis

crient les petits

quelques hommes les entendent

saluent du poing

et sourient.

Jacques Prévert (1937)

domingo, 8 de janeiro de 2012

TERNURA

TERNURA

A REVOLTA É UM PÁSSARO VERMELHO GERADO NO CORAÇÃO DOS OPRIMIDOS. CANTA A TERNURA ONDE AMANHECE O FUTURO.

quinta-feira, 5 de janeiro de 2012

Jessier Quirino - DESEJO UM ANO BEM-BOM


DESEJO UM ANO BEM-BOM


Eu desejo uma arapuca*

De
pegar felicidade

Três caminhão de sossego

Um rio de prosperidade

Mil pulo de alegria

Cem carnavá de folia

Dez anos de mocidade.

Um Ano Novo polpudo

Sem freio e sem vexação

Com almoço, jantar e ceia

De
afrouxar cinturão

Saúde da caprichosa

Chei de
soneca gostosa

Numa redinha de
algodão.

Um Ano Novo melhor

Do que dinheiro achado

do
que manhã de calor

Tomando
ponche gelado.

Melhor do que ser governo

Sem precisar de eleição

Do
que ganhar na loteca

Sem preencher o cartão

Melhor de que espaguete

Melhor do que toalete

Na
hora da precisão.

Jessier Quirino

poeta nordestino

terça-feira, 3 de janeiro de 2012

UM CANTO - Vicente Cariri


UM CANTO

Canto o pranto do homem que não vejo

canto o desejo recôndito dos humildes

canto a bravura dos que madrugam e passam fome,

eu canto o homem,

do dia-a-dia, da noite, da esperança,

canto a vingança sem ódio e

a fartura sonhada na boca da criança.

Canto o do esqueleto anónimo e dos famintos,

canto o amuleto, a figa, a tábua salvadora da loteria,

canto a heresia dos irmãos tinhosos

e a rebeldia dos inconformados.

Canto os do lado, os fora do trilho, os deserdados

da história que o tempo não perdoa.

Canto aquele irmão da academia da rua,

canto o adulto, o arauto, Gentileza

e o indulto da pena cumprida,

canto o homem da lida

e vómito do sistema, dos atónitos

que apodrecem na cadeira panorâmica

e mordem a gengiva engelhada das línguas obscenas

dos que dominam a ogiva.

Canto os reclusos involuntários

a mudança de rumo,

o desequilibrar o prumo,

canto o acaso que prende o bandido do judiciário

que vendeu a alma e o código ao bicheiro,

canto o idílio da fome e do dinheiro,

que um sonha e outro sacraliza,

canto o fardo, a fila das madrugadas,

o gado sem gula, sem guia, sem guizo.

Canto a tristeza do canto do passado

e o presente sem futuro não gozado

dos que constroem seus muros sobre o lodo,

canto os urros dos que comem o lixo dos monturos

da civilização desigual,

o engodo do sinal que a venda não vislumbra,

canto o caos, a sombra moribunda,

a fúria que rasga o primeiro raio,

e espatifa a cabeça do lacaio,

canto a certeza de que canto não é canto,

é a leveza que explode o germinar de tudo.

Vicente Cariri