terça-feira, 3 de janeiro de 2012

UM CANTO - Vicente Cariri


UM CANTO

Canto o pranto do homem que não vejo

canto o desejo recôndito dos humildes

canto a bravura dos que madrugam e passam fome,

eu canto o homem,

do dia-a-dia, da noite, da esperança,

canto a vingança sem ódio e

a fartura sonhada na boca da criança.

Canto o do esqueleto anónimo e dos famintos,

canto o amuleto, a figa, a tábua salvadora da loteria,

canto a heresia dos irmãos tinhosos

e a rebeldia dos inconformados.

Canto os do lado, os fora do trilho, os deserdados

da história que o tempo não perdoa.

Canto aquele irmão da academia da rua,

canto o adulto, o arauto, Gentileza

e o indulto da pena cumprida,

canto o homem da lida

e vómito do sistema, dos atónitos

que apodrecem na cadeira panorâmica

e mordem a gengiva engelhada das línguas obscenas

dos que dominam a ogiva.

Canto os reclusos involuntários

a mudança de rumo,

o desequilibrar o prumo,

canto o acaso que prende o bandido do judiciário

que vendeu a alma e o código ao bicheiro,

canto o idílio da fome e do dinheiro,

que um sonha e outro sacraliza,

canto o fardo, a fila das madrugadas,

o gado sem gula, sem guia, sem guizo.

Canto a tristeza do canto do passado

e o presente sem futuro não gozado

dos que constroem seus muros sobre o lodo,

canto os urros dos que comem o lixo dos monturos

da civilização desigual,

o engodo do sinal que a venda não vislumbra,

canto o caos, a sombra moribunda,

a fúria que rasga o primeiro raio,

e espatifa a cabeça do lacaio,

canto a certeza de que canto não é canto,

é a leveza que explode o germinar de tudo.

Vicente Cariri

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