quinta-feira, 31 de janeiro de 2013

À memória de Paul Éluard




Alexandre O’Neill      Paul Éluard
                        
 À memória de Paul Éluard 

Estudaste a bondade aprendeste a alegria
Iluminaste a
noite com a estrela
E o
desejo com a necessidade
Comunicativo bom inteligente
Soubeste
sofrer sem destruir a vida
Sem chamar pela morte
Soubeste vencer o íntimo lazer
As absurdas
manias que a solidão instala
No
coração virado na cabeça perdida
Soubeste mostrar o mais secreto amor
Numa
alegria feroz perfeita pública
Capaz de provocar o ódio e a ternura
Em todas as frentes que por ti passavam
Contra-atacaste repelindo o
mal
Com pesadas perdas para o inimigo
E na miséria que subia aos rostos
Puseste a
nu a resistência a esperança
E
um futuro sorriso
Enquanto velhas feridas se fechavam
Tua
poesia abriu-se e hoje é comum
E
transparente como os olhos das crianças
Hoje é o pão o sangue e o direito à esperança
À
esperança que é «um boi a lavrar um campo»
E
que é «um facho a lavrar o olhar»
Andaste triste mas não foste a tristeza
Sofreste
muito mas não foste a dor
Amaste
imenso e eras o amor
Cantaste a beleza proferiste a verdade
Encontraste
não uma mas a razão de ser
Compreendeste a
palavra felicidade
E numa extrema juventude e sob o peso
Precioso da simplicidade
Tudo disseste
Disseste o que devias dizer.

In No
Reino da Dinamarca

terça-feira, 29 de janeiro de 2013

UMA CHAMA NÃO SE PRENDE - Manuel Gusmão

UMA CHAMA NÃO SE PRENDE 
rodeado de paredes
rodeadas de
muros altos
que foram depois muralhas
um preso encarcerado
ao
longo da terrível década de 50
inteira
Não cedeu.

Levado a tribunal
em 3 e 10 de Maio de 1950
então fica a saber que Militão e Sofia
presos com ele torturados não «falaram»
não cederam E que esse grande patriota Militão
Ribeiro fazendo greve da fome foi morto
Perante o tribunal acusa os seus acusadores
Defende o
seu Partido a sua acção
e a
sua orientação política

Ponto a ponto responde às calúnias
que são os porcos argumentos do ódio
e do
terror de estado Ponto a ponto
responde
com o orgulho do homem livre
e o
vigor da inteligência Responde por si
e
pelos seus como quem acusa
e
ameaça Ameaça o inimigo que o tem preso
Dos 11
anos seguidos, preso,
14 meses
incomunicável,
8
anos em isolamento
E
não cedeu Nunca cedeu
Agora na humidade salina da cela
contra o eco do estrondo do mar
que não esquece/e grita/contra a fortaleza
contra a corrente contínua dos dias e das noites
este homem livre é uma chama
uma lâmpara
marina

Não cede e desenha
e
estuda e escreve este homem livre
que está preso e é uma chama
açoitada
pelo vento e pelo silêncio
numa
cela
Não cede e escreve
A
Questão Agrária
As
lutas de classes em Portugal nos fins da Idade Média
e escreve uma
tradução do Rei Lear
e escreve
Até Amanhã, camaradas

o homem livre encarcerado
fugiu
enfim
colectivamente
a 3 de
Janeiro de 1960
e
nunca mais foi apanhado
Manuel Gusmão
(de «Três Curtos Discursos em Homenagem Póstuma a Álvaro Cunhal»)

sábado, 26 de janeiro de 2013

A criança e a vida




NÓS SOMOS TRISTES

Na noite de Carnaval eu muito triste,
e via todas as pessoas magoadas.
E a cor do céu também estava aborrecida.
E os homens das laranjas sem apregoar.
E eu não sabia o que tinha sido. Mas quando
a minha Mãe, voltou, disse-me: os polícias
voltaram a bater nos vendedores.
E eu disse à minha Mãe: que chatice!
E a minha Mãe, deu-me um beijo.
[Jorge - 8 anos]

O CÉU

Ó céu que és tão lindo
com essa
vestimenta azulinho claro!
que tu gostas tanto de mim
ó meu céu
da cor dos olhos da minha Mãe.
José Telmo - 8 anos

(de um livrinho que muito estimo)

quinta-feira, 24 de janeiro de 2013

FRAUDULENTOS - Almeida Faria

GUIA PARA CANDIDATOS AOS INFERNOS
X
FRAUDULENTOS

O Oitavo Círculo tem fama de ser o mais concorrido.
Além de nós, incansáveis praticantes da fraude
E seu instrumental (o embuste, o branqueamento,
Os documentos forjados), ao mesmo Círculo vão parar
Os aduladores e sedutores de mansas falas
E os temíveis rufias de várias rufiagens.
Muitos de nós cultivamos a fraude fiscal, banal
Quando Justiça e Estado andam neste estado.
Outros optaram pelo contrabando
Dos secos e molhados da mentirola
Em verso e prosa, das amplas promessas
E poses honestas para enrolar papalvos.
Todos nós, mulheres e os homens,
Porque a vaidade de aceder à verdade
Não compensa, é uma perda de tempo e dá trabalho,
Nos tornámos a fraude de nós próprios, defendendo
A nobre causa do direito à fraude.

Almeida Faria

terça-feira, 22 de janeiro de 2013

Aleksandr Púchkin

Exiit qui seminat seminare semen suun.

Ermo semeador da liberdade,
Saí
sozinho, antes da estrela;
Com a mão límpida e sem pecado,
Nos sulcos da terra escravizados
Lancei o
grão vivificante –
Pena perdida: perdi meu tempo,
Meus bons desígnios e meus cuidados

Pastai
então, povos mansos, pastai!
Não vos acorda o clamor da honra.
Os
dons da liberdade a um rebanho
À
matança ou tosquia destinado?
Vossa herança é, por todo o sempre,
O
jugo de chocalhos e a aguilhada.

Aleksandr Púchkin
(tradução de Nina Guerra e Filipe Guerra)