segunda-feira, 9 de junho de 2014

Que Importa a Fúria do Mar - Ana Margarida de Carvalho



Ana Margarida de Carvalho

Que Importa a Fúria do Mar
   
 «Tersa gente esta, de almas baldias, vontades torcidas pelo frio que aperta, amolecidas pelo sol que expande. Ando aqui a ganhar a morte. Nestes campos de giesta, engatadas raízes no chão, tão presas de seiva e vontade que não as pode a força de um homem arrancar. Ervas daninhas mais difíceis de vergar do que um pinheiro bravo à machadada. O pinheiro deixa o coto apodrecido, vã ruína orgânica, mas as raízes das giestas mantêm-se sorrateiras, infiltrantes, debaixo da terra, a aguardar melhor ocasião para levantar haste. E, mal um homem vira costas, lá estão elas, sob os pés, soturnas, insinuantes, sôfregas de todas as pingas de água, a saciarem-se, a exaurirem as lavouras, sem sequer a gentileza de uma sombra, só pasto de insetos, refúgio de furões, conspiração do matagal. Assim ando eu. Entre mato rasteiro e bravio. Que a vida sempre me foi um ferro de engomar. Quando há um prego que se destaca, martela-se. E no entanto, mesmo amolgado e enterrado, continua lá.  
   De quem é o carvalhal?
   Ando aqui a ganhar a morte. A vergar-me a cada passo, nesta rabugem vegetal, com involuções de ouriço-cacheiro. Se me tocam, eu abro pico em todas as frentes. Que eu nunca pedi nada. Nunca encomendei sermão. Nunca enclavinhei a mão par dar um….»

1ª página do romance, Que Importa a Fúria do Mar
de
Ana Margarida de Carvalho.

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