quinta-feira, 30 de outubro de 2014

DISCIPLINA - CESAR PAVESE

DISCIPLINA

O trabalho começa ao romper do dia. Mas nós começamos,
um pouco antes do romper do dia, a reconhecer-nos
nas pessoas que passam na rua. Ao descobrir os raros
transeuntes, cada um sabe que está sozinho
e que tem sono — perdido no seu próprio sonho,
cada um sabe no entanto que com o dia abrirá os olhos.
Quando a manhã chega, encontra-nos estupefactos
a fixar o trabalho que agora começa.
Mas já não estamos sozinhos e ninguém mais tem sono
e pensamos com calma os pensamentos do dia
até que o sorriso vem. Com o regresso do sol
estamos todos convencidos. Mas às vezes um pensamento
menos claro — um esgar — surpreende-nos inesperadamente
e voltamos a olhar para tudo como antes do amanhecer.
A cidade clara assiste aos trabalhos e aos esgares.
Nada pode turvar a manhã. Tudo pode
acontecer e basta levantar a cabeça
do trabalho e olhar. Rapazes que se escaparam
e que ainda não fazem nada passam na rua
e alguns até correm. As árvores das avenidas
dão muita sombra e só falta a erva
entre as casas que assistem imóveis. São tantos
os que à beira-rio se despem ao sol.
A cidade permite-nos levantar a cabeça
para pensar estas coisas, e sabe bem que em seguida a baixamos.

CESAR PAVESE
em Trabalhar Cansa (Lavorare Stanca)
Tradução de Carlos Leite


quarta-feira, 29 de outubro de 2014

Halfdan Rasmussen

Definhava a vida na pobreza.
Aferrolhado o sonho fazia-se pesadelo.
O pobre nada abraça
no mundo nada tem que possa chamar seu.

Deformado era o tempo pela violência e pela dor.
Cada dia uma máscara de lama e barro.
O cego perde-se e não pode ver.
Aquele que tem olhos é cegado pelo que vê.

Tudo em que tocávamos envilecia.
E nada era certo ou digno de confiança.
Matamos a nossa sede no suor uns dos outros
e damo-nos a comer privações e fome.

Só as crianças saúdam o novo dia
e estendem mãos inocentes.
Um dia esqueceremos a nossa derrota
e neles encontraremos confiança e paz.

Halfdan Rasmussen
(Trad. do dinamarquês por H. H. S. e Lima de Freitas)


terça-feira, 28 de outubro de 2014

POESIA DA VIDA EM MARCHA - Mário Lago

POESIA DA VIDA EM MARCHA

A poesia da vida em marcha
tem ritmo diferente.

Ritmo irregular e desigual
de milhões de martelos
batidos descompassadamente
por milhões de mãos;
de milhões de enxadas
movidas desordenadamente
por milhões de braços;
de milhões de pés
andando desesperadamente
não se sabe para onde.

A poesia da vida em marcha
tem música diferente.

Música sem som
das sirenes das oficinas,
dos apitos das locomotivas,
dos roncos dos motores,
dos gritos das revoltas interiores
dos homens que sofrem nas oficinas,
queimam os pulmões nas caldeiras das locomotivas
e morrem de fome nas fábricas de motores.

A poesia da vida em marcha
tem rimas diferentes.

Rimas sem música,
sem versos que terminam em sílabas iguais.
Rimas de palavras diferentes,
com o mesmo sentido na boca dos que sofrem.

Rimas de palavras que rimam
apenas na ideia,
no pensamento.
Rimas estranhas
de tirania com sofrimento,
de sofrimento com união.
De união com liberdade.

A poesia da vida em marcha
tem  cadência diferente.

Cadência de passos trôpegos
das crianças sem pão,
das mulheres sem lar,
dos homens sem trabalho.
Cadência brutal
das patas de cavalos pisando carne,
de patas de cavalos pisando sangue
dos homens sem trabalho,
das mulheres sem lar,
das crianças sem pão.

Cadência violenta
de braços se estirando num esforço cada vez maior
como quem empurra qualquer coisa.
Cadência confiante, enérgica,
de punhos cerrados batendo,
batendo,
batendo,
de uma só vez,
simultaneamente,
compassadamente,
como quem derruba qualquer coisa.


Mário Lago 


segunda-feira, 27 de outubro de 2014

Luta - Bastos Tigre

Luta
A vida afronta, face a face, e luta!
Do inimigo o vigor não te intimide;
De firme braço e de alma resoluta,
Antes que sejas agredido, agride!

Afronta, a frio, calmo, a força bruta;
Nunca deixes insulto sem revide.
E fraco, embora, no calor da luta,
Não mostres, nunca, que tens medo à lide.

Vencer ou ser vencido - eis o dilema
Na existência - do instante da partida
Até chegar da estrada à meta extrema.

Não te humilha a batalha, por perdida;
"Lutar ainda!" eis, do homem forte, o lema,
Pois a vida sem luta é a morte em vida!

Bastos Tigre
(1882 - 1957)
Editado por: nicoladavid