sábado, 11 de outubro de 2014

CARTA 24 - Paulo José Miranda



NemTodas as Cartas de Amor são Ridículas”, meu caro Álvaro de Campos.
 
Carta 24

Meu amor

O mundo tem os dias contados. E quem pode com o belo que o carregue. Não basta descrever o humano, há que inventá-lo! Não basta ver o que somos, mas o que podemos ser. Quem não sentiu uma mão na cara, para a guerra ou para o amor, não lhe conhece o poder. Quem regressou da morte ao mundo, contrariando duas vezes a natureza, sabe que não deve desperdiçar os dias que lhe são dados, não pode desperdiçar o tempo com aqueles que se afastam. Foi assim, meu amor, que vim aqui parar, sorrindo no alpendre da tua alegria, com um bandolim, um violão e uma garrafa de fazer canções. Andar pelo Universo não é de graça, andar paga-se com a vida. E a vida, meu amor, o tempo em que se vê as formas e as coisas, deve ter responsabilidade. A tristeza não inventa nada. A tristeza tem os pés demasiado apegados à terra, o corpo muito pesado pelo excesso de certezas. A tristeza não voa. Lançada do cimo de um edifício, a tristeza desfaz o seu crânio no asfalto. Como é diferente a alegria meu amor! Já viste, na praia, presa às mãos de uma criança e, mesmo assim, a subir no céu? Não precisas mais do que o vento, para subir. A alegria inventa tudo. Atirada ao mar, a alegria flutua, a alegria nada. A alegria avança em qualquer terreno. Nas densas florestas do teu país, podemos ver a alegria enrolar-se aos troncos das árvores e a pôr a língua de fora. Quem julgas quem inventou a roda, a alegria ou a tristeza? Quem julgas, tu, que inventou a palavra, a calada tristeza ou a efusiva alegria? Quem julgas que inventou o amor? Quem julgas, tu, que inventou Deus, se não a tristeza? Meu amor, a tristeza quer ser maior do que os homens, quer ter a certeza, quer ser ela a dar as ordens, a ditar as regras! A tristeza quer ser omnipresente e omnipotente. A tristeza quer que fiquemos sempre na mesma. Quem julgas que inventou a ciência, a alegria ou a tristeza? Quem julgas, tu, meu amor, que nos pode destruir, a alegria ou a tristeza? Quem julgas, meu amor?
O teu

Paulo José Miranda

2 comentários:

Rogério G.V. Pereira disse...

Continuas na tua faina
Diária
Camarada
De descobrires palavras novas
Que bela, esta carta
Apetecia-me mandá-la
à minha namorada

cid simoes disse...

São mais de setenta cartas; faz como o "Carteiro de Neruda".