terça-feira, 4 de agosto de 2015

DÚVIDAS - Hans Magnus Enzensberger (trad. Almeida Faria)




DÚVIDAS



fica, ao fim e ao cabo, incerto
para todo o sempre o jogo temporal
com os dados brancos e pretos?
fica assente: poucos vencedores
perdidos,
muitos perdedores perdidos?

sim, dizem os meus inimigos.

eu digo: quase tudo o que vejo
podia ser diferente. mas a que preço?
os rastos do progresso são sangrentos.
são os rastos do progresso?
os meus desejos são simples.
simplesmente irrealizáveis?

sim, dizem os meus inimigos.

as secretárias vão vivendo.
os homens do lixo não sabem de nada.
os investigadores prosseguem as suas investigações.
os comedores comem. ainda bem.

entretanto pergunto-me:
amanhã também é dia?
é esta cama uma maca?
alguém tem razão, ou não?

é permitido duvidar das dúvidas?

não, o vosso conselho de enforcar-me,
por bem intencionado que seja, não o seguirei.
amanhã também é dia (será?),
para abrir os olhos e ver:
algo bom, para dizer: eu não tinha razão.

doce dia, aquele em que o evidente
se tornará evidente, ao fim e ao cabo!
que triunfo, cassandra,
saborear um futuro que te desmentisse!
algo novo, que fosse bom.
(o bom antigo já nós conhecemos…)

escuto atentamente os meus inimigos.
quem são os meus inimigos?
os negros chamam-me branco,
os brancos chamam-me negro.
isto gosto de ouvir. poderia significar:
estou no bom caminho.
(existe um bom caminho?)

não me lembro. lamento aqueles
a quem a minha dúvida é indiferente.
esses têm outras preocupações.

os meus inimigos deixam-me perplexo.
querem o meu bem.
tudo seria perdoado a quem se conformasse
consigo e com eles.

um pouco de esquecimento agrada sempre.
um só ámen,
tanto faz a que credo,
e eu estaria sentado confortavelmente com eles
e poderia passar desta a melhor,
enforcar-me, ao fim e ao cabo,
consolado, e reconciliado, sem dúvidas,
com todo o mundo.



Hans Magnus Enzensberger
           (trad. Almeida Faria)




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