quarta-feira, 4 de novembro de 2015

O ATERRO - Fernanda de Castro




O ATERRO

Ao longo dêste cais enorme e mal tratado,
sobre o rio de águas turvas e barrentas,
estende-se o mercado…

Ao lado,
há rixas violentas
e sangrentas,
nas mil tabernas
do cais…

Fatais,
eternas,
as lutas pela vida, mais e mais,
deformam certos crâneos já brutais.

E há faces negras e mãos aduncas,
nas espeluncas…

Vejam esse petiz de de olhos profundos,
que já sabe roubar,
e faz gestos imundos
a quem vai a passar…

Esse outro que aí anda,
de cigarro na boca e gorro à banda,
já é mestre no conto do vigário.

E essa garota ingénua,
de gesto envergonhado,
que vida tem levado!

De volta da Ribeira,
uma linda peixeira,
miudinha,
escultural,
tem movimentos ágeis de sardinha,
cheira a sal…

Agora estala o silvo de um combóio,
que sacode o torpor da linha férrea,
parada, adormecida…
Impagável a fé deste saloio,
que vai jorgar
naquela casa térrea,
tudo o que tem,
talvez a própria vida…

Cabeçudos, biliosos, os eléctricos,
passam nos rails hirtos e geométricos

Oiço um pregão
e o timbre extraordinário,
obriga me a pensar
nos versos de Cesário…

…Dá meio-dia um velho campanário,
para lá da Pampulha…

Nas docas
tem sono o rio e marulha…

O mercado é agora
um monte de destroços
onde uma velha bruxa,
passa arrastando os ossos.

No cais a maré puxa e repuxa,
tenta arrastar o lôdo,
mas jamais conseguiu leva-lo todo,
e as águas continuam cor de barro,
e as muralhas de pedra criam sarro.

Ingénua e linda apenas uma nota:
ao longe, sobre o Tejo,
um vôo de gaivota.

Fernanda de Castro

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