terça-feira, 24 de maio de 2016

Discurso Tardio à Memória de José Dias Coelho - Eugénio de Andrade



Discurso Tardio à Memória de José Dias Coelho

Éramos jovens: falávamos do âmbar
ou dos minúsculos veios de sol espesso
onde começa o vero; e sabíamos
como a música sobe às torres do trigo.

Sem vocação para a morte, víamos passar os barcos,
desatando um a um os nós do silêncio.
Pegavas num fruto: eis o espaço ardente
de ventre, espaço denso, redondo maduro,

dizias; espaço diurno onde o rumor
do sangue é um rumor de ave –
repara como voa, e poisa nos ombros
da Catarina que não cessam de matar.

Sem vocação para a morte, dizíamos. Também
ela, também ela a não tinha. Na planície
branca era uma fonte: em si trazia
um coração inclinado para a semente do fogo.

Morre-se de ter uns olhos de cristal, 
morre-se de ter um corpo, quando subitamente 
uma bala descobre a juventude 
da nossa carne acesa até aos lábios. 

Catarina, ou José – o que é um nome?
Que nome nos impede de morrer,
quando se beija a terra devagar
ou uma criança trazida pela brisa?

Eugénio de Andrade
.

2 comentários:

Olinda disse...

É lindo,este poema!Ouvi-o dito por Ilda Feteira,nun projecto,denominado Vinte e Cinco Razóes de Esperança .Abraço

O Puma disse...

Grande o nosso Eugénio