domingo, 31 de dezembro de 2017

bairro alto - josé ángel cilleruelo

bairro alto

Tudo tem aqui o mesmo abandono:
um quarto com janelas
para a rua e um corpo sem desejo
diante da chuva. Uma mulher que passa
– a luz presa debaixo das meias –
e que desaparece, deixa
o eco de um gemido na pupila
e a saliva quente do suor
na memória.
                       Hotel sem graça,
uma jarra com água à cabeceira,
uma revista dentro do armário,
o fio com um menino Jesus
sobre o decote, e a mão – a minha mão –
percorre o náilon.
                                 Agora as páginas
do diário devolvem-me esta noite,
fria noite num quarto frio.

Para que servirá a inteligência?
Um número na porta, um cheiro acre.

salobre antologia, averno 2004


sexta-feira, 29 de dezembro de 2017

Che Guevara - Sophia de Mello Breyner Andresen

Che Guevara

Contra  ti se ergueu a prudência dos inteligentes e o arrojo 
                                                                  [dos patetas 
A indecisão dos complicados e o primarismo 
Daqueles que confundem revolução com desforra 

De poster em poster a tua imagem paira na sociedade de 
                                                                [consumo 
Como o Cristo em sangue paira no alheamento ordenado das 
                                                                [igrejas 

Porém 
Em frente do teu rosto 
Medita o adolescente à noite no seu quarto 
Quando procura emergir de um mundo que apodrece 

in "O Nome das Coisas"


quinta-feira, 28 de dezembro de 2017

NA PASSAGEM DE UM ANO - José Carlos Ary dos Santos

NA PASSAGEM DE UM ANO


Erros nossos não são de toda a gente
Tropeçamos às vezes na entrega
Mas retomamos sempre a marcha em frente
Massa humana que nada desagrega.


Para nós o passado e o presente
São futuro no qual o povo pega
Com suas mãos de luz incandescente
Que aquece que deslumbra mas não cega.


Para nós não há tempo. O tempo é vento
Soprando ano após ano sobre a história
Que para nós é vida e não memória.


Por isso é que no tempo em movimento
Cada ano que passa é menos tempo
Para chegar ao tempo da vitória.

 

quarta-feira, 27 de dezembro de 2017

Sê o dono de ti - Ricardo Reis





Os deuses são felizes.
Vivem a vida calma das raízes.
Seus desejos o Fado não oprime,
Ou, oprimindo, redime
Com a vida imortal
Não há sombras ou outros que os contristem.
E, além d’isto, não existem…

*   *   *
Sê o dono de ti
Sem fechares os olhos.

 

terça-feira, 26 de dezembro de 2017

Um rosto no Natal - Ruy Belo

Um rosto no Natal

Caiu sobre o país uma cortina de silêncio
a voz distingue o homem mas há homens que
não querem que os demais se elevem sobre os animais
e o que aos outros falta têm eles a mais
No dia de natal eu caminhava
e vi que em certo rosto havia a paz que não havia
era na multidão o rosto da justiça
*um rosto que falava quando a voz calava
um rosto que chegava até junto de mim da nicarágua
um rosto que me vinha de qualquer das indochinas
num mundo onde o homem é um lobo para o homem
e o brilho dos olhos o embacia a água
Caminhava no dia de natal
e entre muitos ombros eu pensava
em quanto homem morreu por um deus que nasceu
A minha oração fora a leitura do jornal
e por ele soubera que o deus que cria
consentia em seu dia o terramoto de manágua
e que sobre os escombros inda havia
as ornamentações da quadra de natal
Olhava aquele rosto e nesse rosto via
a gente do dinheiro que fugia em aviões fretados
e os pés gretados de homens humilhados
de pé sobre os seus pés se ainda tinham pés
ao longo de desertos descampados
Morrera nesse rosto toda uma cidade
talvez pra que às mulheres de ministros e banqueiros
se permita exercitar melhor a caridade
A aparente paz que nesse rosto havia
como que prometia a paz da indochina a paz na alma
Eu caminhava e como que dizia
àquele homem de guerra oculta pela calma:
se cais pela justiça alguém pela justiça
há-se erguer-se no sítio exato onde caíste
e há-de levar mais longe o incontido lume
visível nesse teu olhar molhado e triste
Não temas nem sequer o não poder falar
porque fala por ti o teu olhar
Olhei mais uma vez aquele rosto era natal
é certo que o silêncio entristecia
mas não fazia mal pensei pois me bastara olhar
tal rosto para ver que alguém nascia

*-- NAU DOS CORVOS –pag.343
- PAÍS POSSÍVEL –pag.385
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Assírio Alvim, dezembro 2000