sexta-feira, 8 de dezembro de 2017

O inolvidável ARY (07-12-1937 / 18-01-1984)

Texto do jornalista Baptista Bastos publicado no «Diário Popular» de 19 de Janeiro de 1984
«Ary dos Santos morreu com 46 anos, cheio de álcool, de solidão e amargura. O álcool, a esse, não escondia: bebia imoderadamente, gregário ou desacompanhado.
A solidão e a amargura, essas, tentava escondê-las, esquecê-las, mergulhando num oceano de palavras, de frases, de locuções, de imagens - para, depois, emergir desse turbilhão com poemas e cantigas, cantigas e poemas que reflectiam um tempo, uma época, um amor, um encontro ou um desencontro; uma furtiva lágrima, uma precária felicidade.
Mas a essa onda de solidão e de amargura Ary dos Santos opunha o seu vozeirão e impunha as palavras como bandeiras desfraldadas:
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O que é preciso é termos confiança
Se fizermos de Maio a nossa lança,
isto vai, meus amigos,
isto vai!
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Isso. Isso mesmo: rasgando o desespero com gritos e com cóleras, juntando a sua voz à voz do imenso protestar colectivo - eis Ary dos Santos:
cabotino, espectaculoso, truculento, corajoso como poucos; cabeça alevantada, punho cerrado e erguido, olhar de fogo, a chispa indomável de uma labareda interior que o consumia:
E, também; um grande poeta - acentue-se: Um grande poeta português, da linhagem de um Guerra Junqueiro, de um Gomes Leal, de um Cesário Verde ou de um Gabriel Marujo ou de um Linhares Barbosa (porque não?), todos na mesma fileira, todos eles empenhados, de uma maneira ou de outra, em restituir a voz àqueles a quem a voz tinham roubado.
A pedanteria lítera endossava a poesia de Ary dos Santos para os fojos mais sombrios das «letras de canções».
Letrista, somente; é o que diziam. Será. À maneira dos trovadores medievais, dos menestréis dos condados, que divertiam o povo e zombavam dos senhores da guerra e do mando.
Mas a poesia de Ary dos Santos supera esses confins de desdenhosa fronteira: foi o que foi, é o que é. E frequentemente; é poesia da melhor que produziu a nossa lírica.
Doente, limitado na vida de liberdade que sempre cultivara com grandeza e esmero, Ary dos Santos continuava a trabalhar.
Redigia um livro autobiográfico; «Estrada da Luz-Rua da Saudade», e preparava a edição de dois livros de versos, «Trinta e Cinco Sonetos» e «As Palavras das Cantigas».
Foram seiscentas, as letras para canções que Ary dos Santos compõs: renovou, discutiu, pôs em causa, fez aluir tabus, impôs uma nova visão e, um novo espelho da própria realidade portuguesa: Formou com Nuno Nazareth Fernandes e Fernando Tordo duas parcerias famosas: estes três homens deram uma volta importantíssima na assim chamada «canção ligeira» e ensinaram-nos uma nova maneira de ouvir sons portugueses com o idioma português.
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Esteve em todas, o José Carlos Ary dos Santos. Com o irrespeito que lhe era natural; com a irreverência que lhe era comum, com a figura impositiva, imponente, rara.
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Declamou poemas seus e de outros grandes poetas portugueses em celeiros, estábulos, palanques improvisados, estádios, clubes e colectividades populares; ao ar livre; no tablado dos teatros e no chão rijo das eiras alentejanas.
Cantou a Reforma Agrária, cantou o malho e a bigorna, a Liberdade. Cantou-nos. Cantou Abril, cantou Abril! Engrandeceu-nos e melhorou-nos como seres humanos.
Militante do Partido Comunista Português, nunca foi um espectador passivo ou pacificado dos acontecimentos que fizeram a nossa História próxima recente.
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A maneira dos grandes poetas portugueses que, ao longo do passado colectivo, com frequência encarnaram o próprio corpo da Nação esquecida, humilhada e ferida, Ary dos Santos foi a cólera, a imprecação, o protesto:
Disse português em Portugal e no estrangeiro.
Disse que estávamos vivos, que éramos pessoas, que estávamos aqui e aqui continuaríamos.
Disse que pertencíamos a uma raça de homens livres e indomáveis, que livre e indomavelmente havia caminhado pelo Mundo, rasgando os sulcos de outras pátrias.
Disse isto e muito mais. Não parava. Nunca parou.
Não há memória de o Ary vez alguma ter parado.
A não ser agora: por motivos de força maior.»

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