sábado, 31 de março de 2018

CANTIGA DO ÓDIO - Carlos de Oliveira



CANTIGA DO ÓDIO

O amor de guardar ódios
agrada ao meu coração,
se o ódio guardar o amor
de servir a servidão.
Há-de sentir o meu ódio
quem o meu ódio mereça:
ó vida, cega-me os olhos
se não cumprir a promessa.
E venha a morte depois
fria como a luz dos astros:
que nos importa morrer
se não morrermos de rastros?

sexta-feira, 30 de março de 2018

PRIMEIRO RETRATO NATURAL - Alexandre O’Neill

PRIMEIRO RETRATO NATURAL

Ela queria perceber o que se passa.
Queria?

Passa a rua às risadas.
«Uscumunistas?»

Gritam flores da jarra.
Estão inocentes?

O telefone terrinta.
É o destino?

Na bandeja de prata, o sedativo.
Por tomar?

Na sala das porcelanas, a senhora.
Por viver.

*

De sentinela à porcelana
está Inês ou Teresa ou Ana
(Maria, deixa-se ver).
Tem à mão uma bengala
para o que der e vier:
«Se os bolchevistas entrarem,
vão ver, vão ver!
As porcelanas inteiras
é que eles não hão-de ter!»

*
Porcelana implora
senhora insiste.
Até que a levam prà cama,
Pauzinho em riste, zangada.

É uma terrina vazia
que em sonhos se suicida
à bengalada.

(1975)


terça-feira, 27 de março de 2018

QUANDO VIER A PRIMAVERA - Alberto Caeiro


 

QUANDO VIER A PRIMAVERA

Quando vier a Primavera,
Se eu já estiver morto,
As flores florirão da mesma maneira
E as árvores não serão menos verdes que na Primavera passada.
A realidade não precisa de mim.
Sinto uma alegria enorme
Ao pensar que a minha morte não tem importância nenhuma.
Se soubesse que amanhã morria
E a Primavera era depois de amanhã,
Morreria contente, porque ela era depois de amanhã.
Se esse é o seu tempo, quando havia ela de vir senão no seu tempo?
Gosto que tudo seja real e que tudo esteja certo;
E gosto porque assim seria, mesmo que eu não gostasse.
Por isso, se morrer agora, morro contente,
Porque tudo é real e tudo está certo.
Podem rezar latim sobre o meu caixão, se quiserem.
Se quiserem, podem dançar e cantar à roda dele.
Não tenho preferências para quando já não puder ter preferências.
O que for, quando for, é que será o que é.



domingo, 25 de março de 2018

O poema da curva - Oscar Niemeyer


O poema da curva

Não é o ângulo reto que me atrai.                                                
Nem a linha reta, dura, inflexível,
criada pelo homem.
O que me atrai é a curva livre e
sensual. A curva que encontro nas
montanhas do meu país, no curso sinuoso                                  
dos seus rios, nas nuvens do céu, no corpo
da mulher amada.
De curvas é feito todo o Universo.
O Universo curvo de Einstein.