segunda-feira, 30 de setembro de 2019

ABRIL - Rui Namorado



abril

2.

Abril é uma palavra abandonada
à vertigem de todos os mistérios

um tempo aberto   rigoroso   puro
a casa que sabemos e nos espera

mil vezes esquecidos    nunca ausentes
cabemos neste mês de corpo inteiro

somos nós os recantos deste Abril


domingo, 29 de setembro de 2019

As Empregadas Fabris - João Luís Barreto Guimarães

As Empregadas Fabris


Arregaçam a manhã (as empregadas fabris)
pernas como tesouras
recortando a calçada
ferem o lenho da mesa com
sortes
de boletim. Uma sirene as trouxe aqui
(às
empregadas febris)
ancas de esboço perfeito sob
vestes de operária
tocam umas nas outras como
inda fossem meninas mas a
delas que vai noivar já
traz o primeiro a caminho. E
quando o cigarro se apaga
(ou a
cerveja se escoa) o
que resta é a dor da tarde
que nem esta chuva afaga
o
gasóleo dos rapazes que
lhes cantam a cantiga e
as tomam pela cintura. Um
foguete fecha a festa
(pelo lado de dentro da coxa)
há nelas a incerteza de
não saberem se são
incompletamente infelizes.


João Luís Barreto Guimarães


sábado, 28 de setembro de 2019

Estes Homens - José Manuel Mendes

Estes Homens

estes homens
abrem as portas
do sol nascente

conhecem os íntimos latejos
da cal as soltas águas
os fermentos as uvas
os cílios discretos do pão

amam as urzes e as fontes
o suor dos fenos
a febre moira de um corpo
de mulher

estes homens
partem a pedra
com martelos de solidão
(os olhos abismados
nos goivos
da lonjura)

erguem as paredes
as janelas crepusculares
as asfaimadas antenas das cidades:
céu de cimento; baba remota
do cansaço

estes homens
tamisam cores: viajam nos navios
pescam no cisco das pérolas
do vidro
são garimpeiros
de uma esponja
de coral

moldam nas forjas
as sílabas secretas
do ferro
afeiçoam os seixos e o linho
o bafo marítimo
das palavras

estes homens
dizem casa com dezembro
nas veias
ternura com a sede de uma seara
grávida
assobiam comovidos contra as sombras
trazem na algibeira
o trevo rugoso das cantigas

estes homens:
guardadores de cabras
e de mágoas
de espantos e revoltas
servos emigrantes
contrabandistas
soldados andarilhos do mar
carabineiros da má sorte
trepadores das sete colinas
operários
azeitoneiros
ratinhos
levantam por maio
os cantis do lume: voz de musgo
concha entreaberta

estes homens
(pátria viva; horizonte
de prata
à flor da bruma)
modelam nos andaimes
do tempo
o oiro (medular) da
liberdade


sexta-feira, 27 de setembro de 2019

Estamos porreiros - ARMINDO MENDES DE CARVALHO


Estamos porreiros

Estamos porreiros
Saúde excelente
bem comidos
e dormidos
Ninguém está doente
o que já chateia
O sol aqui é quente
e a chuva fria


Vento em popa
conveniente


O mar tranquilo
regulado
para nadar


A hora é exacta
às doze em ponto
é mesmo meio dia


O melhor que há
passa por cá
vamos ao teatro
vamos ao cinema
vamos ao ballet


Estamos todos porreiros
estamos todos contentes
olarilolé


Vamos ao Algarve
para falar estrangeiro
Vamos viajar
vamos dar uma volta
num cruzeiro


Vamos ao Tavares
vamos ao Lacerda
a todos os lados
aqui e ali


e vamos à merda

ARMINDO MENDES DE CARVALHO
In "Poemas de ponta e Mola" - 1975

quarta-feira, 25 de setembro de 2019

Pelos nossos - Gustavo Pereira

Pelos nossos

Por aqueles que amaram ou foram amados sem medida
Por aqueles que escreveram cartas de amor sem esperança
Por aqueles que refizeram com cinza quanto lhes foi arraigado ou proibido
Por quem não se renegou a si mesmo na desolação dos seus tormentos
Por quem se recusou a pactuar com a astúcia
Por aqueles que optaram por um pedaço de pão duro entre coragem e vergonha
Por aqueles que no desconcerto se precipitaram na alucinação  da audácia e convocaram o Samán compartilhado.
Por os que não usaram truques desprezíveis
Por os que atravessaram sem se ferir golpes e dentadas
Por os que feitos pó ainda guardam no peito pobres poderes para franquear inclemências
Por aqueles que resistiram sem se queixar nem pedir nada em troca
Por aqueles que ainda que só tendo recebido afrontas e desprezo encontraram em nós motivos para resistir
Por aqueles que nos deixaram a chave dos primeiros paraísos e decifraram por nós os hieróglifos dos inescrutável
Por todos que lutaram e nos ensinaram a lutar
Por aqueles que entregaram ossos e sonhos como desculpando-se
Por os que não ambicionaram mais glória do que a sua pobre tempestade sem abrigo
Por aqueles que se abismaram ante a maravilha e se reconheceram nas suas chamas
 
Escrevo estes versos.