sexta-feira, 13 de setembro de 2019

Apfelstrudel - Ana Margarida de Carvalho

Apfelstrudel

Aprende comigo, filha, 
Este andar de sombra de serpente, 
Rente e rasteiro,
esgueirado nas esquinas, 
Com a leveza nos pés, as mãos vertiginosas, 
A suspender a trepidação cardíaca, 
E o curso do sangue nas veias. 

Um dia te ensino, minha filha, 
A escutar as cores, a falar silêncios, 
A soltar os fiapos, 
Das arestas, dos estilhaços, 
Que te embaraçam a saia. 
A caminhar nos escombros, 
Sem derrocar pedra pequeninas, areias, cacos, fragmentos, restos,
Excertos de existências, 
Pulverizadas. 

Aprende comigo, filha, 
Que nem o caos deve ser perturbado
E a vida voa baixinho

Nunca te lerei poemas, meu amor, 
Que te puxem a fome, e a beleza intacta das coisas
Ofende o despedaço. 

Leremos juntas, 
Não os livros sagrados
Que pregam o perdão e praticam o esquecimento. 
De nós

Leremos juntas, 
Olha, que lindo, 
O livro de receitas da avó:
Deite a farinha em monte sobre uma superfície lisa, 
A candura das palavras, filha, repara:
No meio um ovo e duas colheres de azeite, 
A exactidão da sintaxe:
Amasse com água morna e sal, 
E na volúpia da fusão, 
Envolva na massa a compota de maçã, 
Entraremos juntas na absolvição do cosmos. 

In Pequenos Delírios Domésticos 




Sem comentários: