sábado, 18 de dezembro de 2021

“Doidejo sem humano malefício alheio”- Daniel Abrunheiro

 

“Doidejo sem humano malefício alheio”

 

Afinal sereno amor consagro 

à substantiva vida ramerrónica.

Mormente sou de chapar a tónica

a estilete de vocábulo agudo & magro.

 

Doidejo sem humano malefício alheio

por entre bípede arvoredo sem capuchinhos

nem lobos maus. Já o grau dos vinhos,

esse sim conta a total & de permeio.

 

Sou alegremente infeliz como toda a gente.

Frequento salões só de um criado poeirento.

Vezes há em que nem sei como me aguento,

assim estacando em lentidão & de repente.

 

A devoluta infância não tem de si retorno.

Envelhecer tem de si rijezas de corno.

Fétidos miasmas de outrora doces situações

infestam enxúndias manhãs do colete aos calções.

 

Uivantes longes-luzes de ambulâncias

malinquietam o esplanado óciopoeta.

São como males-de-família: useira peta

com que nos mentimos vilezas & distâncias.

 

Trovo pouco impante esta poesia

que nem é tropical nem estufa-fria.

E a mais que vier há-de ser rasura

de quanta não menti à literatura.

 

II

 

O amor que lhe tenho, senhores, não pode

dar volta de chave a casa devoluta.

E se acaso falho, quem de aí me acode?

E se quem me fala nem sequer me escuta?

 

Não descuido por enquanto o estar vivo,

que ele há ocupações bem piorzinhas.

Não gosto é de suar estopinhas

nem de ama sem amor ser cativo.

 

Que lhe tenho a quem, senhores, a quem?

Não é a quem mas a que, isso sim, senhores:

à vida o mor das vezes malvivida, Mãe!

Ó Pai, à vida sem fraldas nem pundonores!

 

Sei hoje contornar espécies malextintas,

aviar necrologias, topar o melhor bacalhau.

Nunca fui só Português de meias-tintas:

isso é que não, e isso é que sim seria mau.

 

Abateu-se sobre Coimbra um céu de cinzas

de águas todas desfeitas em chã poalha.

Gosto d’invernias! O céu a quem o trabalha!

Se sou nisto vero? Sou-o sim, mas

 

nem toda a gente é ré do mesmo mocho.

Boníssimo homem, meu Pai. De uma perna coxo,

purgou sem Deus nem maior literatura

um amor sem remédio por a Pintura.

 

III

 

Estou sentado em a minha orfandade

como quem foi ali-ali-sem-promessa-de-voltar.

Dou voltas de peão por esta mesma Cidade

que Portugal é todo, assim por modo de falar.

 

Poeticamente, tenho tido poucas auditorias:

mas eticamente, sofri já muitas julgadorias.

Conheço muitos aveiros, viseus & leirias:

mas o mais nem é autotropicai’stufas’frias.

 

Estou alapado em a minha mediocridade,

que a idade já não é sã-juvenil.

Peregrino voltitas p’la Cidade.

E morreu o Tó-Zé de Trouxemil.

 

Merdeticamente, tenho ido por muitas vias:

mormente calado ante idiotas.

Juventudes partidárias (vulgo jotas)

são prolepses de baba bolçada a pias.

 

Cresce a erva sob o carro abandonado

na rua que dá face a um baldio.

Foi já novo & bebé tal Renault Clio,

agora está ali morto & de lado.

 

E o Thierry Le Luron da velha França,

essa que já não é farol-d’Europa?

Art.º 16, não pode tropa:

a vida é muito brava, não é mansa.

 

IV

 

Tenho sofrido atenção ao que se passa em Angola.

O Sudão também me interessa, mas é mais calorífero.

Preto ou menos branco, o humano é mortífero:

não lida bem c’a vida, bate mal da tola.

 

E rezar sem ler? E ser de Coração de còr?

E perseguir a branca núbil só porque sim?

E ter um jesus-ai-de-mim semeado no jardim?

E ser anafórico? E eufórico? E melhor?

 

E falar com Margarida? E ser ultra sem suor?

E ser de uma música tocada p’ra ninguém?

E nunca, à Língua, tê-la tornado melhor?

E ser atento a sós sem Pai nem Mãe?

 

Daniel Abrunheiro

 

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