segunda-feira, 30 de janeiro de 2023

Um pedreiro à hora do almoço - Allen Ginsberg

 

Um pedreiro à hora do almoço

 

Dois pedreiros erguem as paredes

de uma cave sobre um pedaço de terra cavado

há pouco atrás de uma velha casa de madeira

com espigões castanhos invadidos por hera

numa rua sombria de Denver. É meio -dia

e um deles afasta -se devagar. O pedreiro

aprendiz descansa lânguido por

momentos depois de comer uma sanduíche

e de atirar com o saco de papel. Está

de macacão e nada o cobre acima

da cintura; tem cabelo amarelo e traz

na cabeça um boné surrado vermelho

vivo. Languidamente, senta -se no cimo

a parede num escadote encostado

entre as coxas, a cabeça

inclinada, fitando desinteressado

saco de papel pousado na relva. Passa

a mão pelo peito, e depois

esfrega devagar os nós dos dedos no

queixo, e baloiça para trás e para a frente

sobre a parede. Um pequeno gato aproxima -se

ao longo da parede. Agarra

o gato e, por instantes, com o boné

 cobre o corpo do gatinho.

 Entretanto escurece como se fosse chover

 e o vento no cimo das árvores ao longo da

 rua insinua-se como que violentamente.

 

Allen Ginsberg

 Denver, Verão 1947

domingo, 15 de janeiro de 2023

Compostos - Fernando Couto

 

Compostos

alinhados

em silêncio

um nadinha

contrafeitos

apodrecemos

Sem um grito

nem um gesto

ordeiros - - como convém

e nos ordenam –

  apodrecemos

em jeito de compostura

Sem dar trabalho

nem despesa

ao pelotão

nem incómodo

de funerais complicados

e turbulentos

 

Fernando Couto

 


sexta-feira, 13 de janeiro de 2023

O RETRATO DE CATARINA - Carlos Aboim Inglês

 

O RETRATO DE CATARINA


Esses teus olhos enxutos
Num fundo cavo de olheiras
Esses lábios resolutos
Boca de falas inteiras
Essa fronte aonde os brutos
Vararam balas certeiras
Contam certa a tua vida
Vida de lida e de luta
De fome tão sem medida
Que os campos todos enluta

Ceifou-te ceifeira a morte
Antes da própria sazão
Quando o teu altivo porte
Fazia sombra ao patrão
Sua lei ditou-te a sorte
Negra bala foi teu pão
E o pão por nós semeado
Com nosso suor colhido
Pelo pobre é amassado
Pelo rico só repartido

Tanta seara continhas
Visível já nas entranhas
Em teu ventre a vida tinhas
Na morte certeza tenhas
Malditas ervas daninhas
Hão-de ter mondas tamanhas
Searas de grã estatura
De raiva surda e vingança
Crescerão da tua esperança
Ceifada sem ser madura

Teus destinos Catarina
Não findaram sem renovo
Tiveram morte assassina
Hão-de ter vida de novo
Na semente que germina
Dos destinos do teu povo
E na noite negra negra
Do teu cabelo revolto
nasce a Manhã do teu rosto
No futuro de olhos posto


 Carlos Aboim Inglês

terça-feira, 10 de janeiro de 2023

Poema aos homens constipados - António Lobo Antunes

 

"Zelig" (1983), de Woddy Allen.

 Poema aos homens constipados,

"Pachos na testa, terço na mão

Uma botija, chá de limão

Zaragatoas, vinho com mel

Três aspirinas, creme na pele

Grito de medo, chamo a mulher

Ai Lurdes, Lurdes, que vou morrer

Mede-me a febre, olha-me a goela

Cala os miúdos, fecha a janela

Não quero canja, nem a salada

Ai Lurdes, Lurdes, não vales nada

Se tu sonhasses, como me sinto

Já vejo a morte, nunca te minto

Já vejo o inferno, chamas diabos

Anjos estranhos, cornos e rabos

Vejo os demónios, nas suas danças

Tigres sem listras, bodes de tranças

Choros de coruja, risos de grilo

Ai Lurdes, Lurdes, que foi aquilo!

Não é a chuva, no meu postigo

Ai Lurdes, Lurdes, fica comigo

Não é o vento, a cirandar

Nem são as vozes, que vêm do mar

Não é o pingo de uma torneira

Põe-me a santinha, à cabeceira

Compõe-me a colcha, fala ao prior

Pousa o Jesus, no cobertor

Chama o doutor, passa a chamada

Ai Lurdes, Lurdes, nem dás por nada

Faz-me tisanas, e pão-de-ló

Não te levantes, que fico só

Aqui sozinho a apodrecer

Ai Lurdes, Lurdes que vou morrer."

 

António Lobo Antunes

 in "Letrinhas de Cantigas".

 

sábado, 7 de janeiro de 2023

segunda-feira, 2 de janeiro de 2023

NÃO ESPERES O TEMPO - Carlos Aboim Inglês

 






NÃO ESPERES O TEMPO

 

Camarada poeta: se puderes

pega na palavra e não te cales

mais. Digo que não esperes,

para cantar, o tempo da colheita.

Agora a fome é tanta

que a palavra pão também se come.

Quem diz pão diz fome e a fome de a não ter não é sobeja.

Digo que a palavra seara faz crescer

o grão da raiva de a não ter.

Digo que a palavra fonte faz jorrar

rios de sede até ao mar.

A palavra trabalho, a palavra suor,

a palavra amiga, a palavra amor.

A palavra precisa, de vendaval ou brisa:

a que denuncia, a que profetiza.

Digo que a palavra que disseres

se pode desfolhar como os malmequeres:

ou muito ou pouco ou tudo ou nada.

O que não pode é ficar calada.

 

Carlos Aboim Inglês