quinta-feira, 31 de julho de 2014

O poema - Casimiro de Brito

O poema



"Poemas, sim, mas de fogo
devorador. Redondos como punhos

diante do perigo. Barcos decididos

na tempestade. Cruéis. Mas de uma

crueldade pura: a do nascimento,

a do sono, a da morte.

Poemas, sim, mas rebeldes.

Inteiros como se de água, e,

como ela, abertos à geometria

de todos os corpos. Inteiros

apesar do barro e da ternura

do seu perfil de astros.

Poemas, sim, mas de sangue.

Que esses poemas brotem

do oculto. Que libertem o seu pus

na praça pública. Altos, vibrantes

como um sismo, um exorcismo
ou a morte de um filho.


Casimiro de Brito


segunda-feira, 28 de julho de 2014

O que se pode fazer da vida - Constantino Cavafy

O que se pode fazer da vida

Quanto Puderes
Se não podes fazer da vida o que tu queres,
tenta ao menos isto,
quanto puderes:
não a disperses em mundanas cortesias,
em vã conversa, fúteis correrias.

Não a tornes banal à força de exibida,
e de mostrada muito em toda a parte
e a muita gente,
no vácuo dia-a-dia que é o deles
– até que seja em ti uma visita incómoda.



Constantino Cavafy
Tradução de Jorge de Sena, Edições Asa.

domingo, 27 de julho de 2014

Ruy Belo


Ruy Belo, "Algumas proposições com pássaros e árvores". Dito pela atriz Luísa Cruz na Antologia / CD, Ao Longe os Barcos de Flores (2004)
Tradução para inglês de Richard Zenith.

 
Os pássaros nascem nas pontas das árvores

As árvores que eu vejo em vez de fruto dão pássaros
Os pássaros são o fruto mais vivo das árvores
Os pássaros começam onde as árvores acabam
Ao chegar aos pássaros as árvores engrossam movimentam-se
Deixam o reino vegetal para passar a pertencer ao reino animal
Como pássaros poisam as folhas na terra
Quando o Outono desce veladamente sobre os campos
Gostaria de dizer que os pássaros emanam das árvores
Mas deixo essa forma de dizer ao romancista
É complicada e não se da bem na poesia
Não foi ainda isolada da filosofia
Eu amo as árvores principalmente as que dão pássaros
Quem é que lá os pendura nos ramos?
De quem é a mão a inúmera mão?
Eu passo e muda-se-me o coração

Ruy Belo

sexta-feira, 25 de julho de 2014

Pátria desamada - Dinis H. G. Nunes

Pátria desamada

vês o teu país
como um filho
que passa mal
e tu passas por ele
e não fazes nada?

uma pátria perdida
louca varrida
violada
um povo humilde humilhado
a pedir mendigo justiça
uma terra de ninguém
onde diseurs da mentira
proclamam grandes verdades
e tomam posse da minha amada pátria
como se fosse uma junta de freguesia
ajeitam a gravata
acertam o preço com os fregueses
e trespassam-na no mercado:
rápido que é para acabar

Dinis H. G. Nunes

quinta-feira, 24 de julho de 2014

Daniel Abrunheiro

 
Daniel Abrunheiro

LENDO E VENDO E SENDO de Duarte Belo,
NO NÚCLEO DA CLARIDADE – entre as palavras de Ruy Belo

para o dito Duarte, naturalmente

Melhores dias não virão talvez
salvar-nos da carestia anunciada
de de borla morrer e de viver pra nada
a meio da graciosa desgraça do português
como este-aquele ali, que pelas esplanadas
pedincha o cêntimo para a sopa, o tostão pró-pão,
por sua alma de cristão que é para pão, 
pela pobreza da minha roupa que é prá-sopa,
isto não é que me comova mas amargura-me,
mais de meia população vive do ar, que não da terra,
o resto vai a pé a Fátima ver a boneca, cura-me,
ó Virgem de louça, da cegueira que nos aterra,
não, melhores dias não virão,
sabeis,
mas não tarda será Verão,
vereis
.

Daniel Abrunheiro
Leiria, quarta-feira, 30 de Novembro de 2011