quarta-feira, 23 de julho de 2014

(do Auto da Festa) - Gil Vicente

(do Auto da Festa)

Verdade           Acabai já de contar
como passou vosso feito.
Vilão        Trago tamanho despeito,
que estou pera me enforcar
e deitar por i a eito.

A justiça não parece,
a verdade é desterrada,
e a mentira honrada,
o que agora mais merece
esse há menos soldada.

A meu pai ouvi dizer
(nego ua autoridade,
nunca me há-de esquecer):
«Quem quiser ter de comer
que nunca fale verdade,
senão sempre à vontade
do senhor com quem viver.»

Verdade          Nos outros tempos passados
era muito honrada,
do povo muito adorada;
e agora por seus pecados
ando assi desterrada.


Vilão               Os homens hão de seguir
a opinião geral,
porque já em Portugal
quem não costuma mentir,
não alcança um só real.

Que os homens verdadeiros
não são tidos nua palha;
os que são mexeriqueiros,
mentirosos, lisongeiros,
esses vencem a batalha.

I não há já merecer
nem servir com diligência:
quem quiser ter que comer
trabalhe por aderência,
haverá quanto quiser.

Vós outros andais no Paço,
nunca vos falta desgosto,
e eu assi como são tosco
segunda a vida que faço
não trocaria convosco.

Porque, com duas sardinhas,
fico eu mais satisfeito,
que vós com vosso desfeito,
nem com capões, nem galinhas,
não vos fazem mais proveito.
Gil Vicente


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