Nem “Todas as Cartas de Amor são Ridículas”, meu
caro Álvaro de Campos.
Carta 24
Meu amor
O mundo tem os dias
contados. E quem pode com o belo que o carregue. Não
basta descrever
o humano, há que
inventá-lo! Não basta
ver o que
somos, mas o que
podemos ser. Quem
não sentiu uma mão
na cara, para a guerra ou para o amor, não lhe conhece
o poder. Quem
regressou da morte ao mundo,
contrariando duas vezes a natureza, sabe que
não deve desperdiçar
os dias que
lhe são
dados, não
pode desperdiçar o tempo
com aqueles
que se afastam. Foi assim,
meu amor,
que vim aqui
parar, sorrindo no alpendre
da tua alegria, com
um bandolim,
um violão
e uma garrafa de fazer canções. Andar pelo Universo não é de graça,
andar paga-se com
a vida. E a vida,
meu amor,
o tempo em
que se vê
as formas e as coisas,
deve ter responsabilidade.
A tristeza não
inventa nada.
A tristeza tem os pés
demasiado apegados à terra,
o corpo muito
pesado pelo excesso
de certezas. A tristeza
não voa. Lançada
do cimo de um
edifício, a tristeza
desfaz o seu crânio
no asfalto. Como
é diferente a alegria
meu amor!
Já viste, na praia,
presa às mãos
de uma criança e, mesmo
assim, a subir
no céu? Não
precisas mais do que
o vento, para subir. A alegria inventa tudo. Atirada ao mar,
a alegria flutua, a alegria
nada. A alegria
avança em
qualquer terreno.
Nas densas florestas do teu país,
podemos ver a alegria
enrolar-se aos troncos das árvores e a pôr a língua de fora.
Quem julgas quem
inventou a roda, a alegria
ou a tristeza?
Quem julgas, tu,
que inventou a palavra,
a calada tristeza
ou a efusiva
alegria? Quem
julgas que inventou o amor? Quem julgas,
tu, que
inventou Deus, se não
a tristeza? Meu
amor, a tristeza
quer ser maior do que os
homens, quer
ter a certeza,
quer ser ela a dar as ordens, a ditar as regras! A tristeza quer ser omnipresente e
omnipotente. A tristeza quer
que fiquemos sempre
na mesma. Quem
julgas que inventou a ciência, a alegria
ou a tristeza?
Quem julgas, tu,
meu amor,
que nos
pode destruir, a alegria
ou a tristeza?
Quem julgas, meu
amor?
O teu
Paulo
José Miranda
2 comentários:
Continuas na tua faina
Diária
Camarada
De descobrires palavras novas
Que bela, esta carta
Apetecia-me mandá-la
à minha namorada
São mais de setenta cartas; faz como o "Carteiro de Neruda".
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