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A mata dos eucaliptos
é um silêncio
de mar ao meio
do dia; meio-dia,
hora branca,
meio-dia para
todos, almoço
para quem no
tem; o deus do caos
não tem aqui
lugar, no seio
dos eucaliptos acenando do alto uma luz de
presença e de rumor
do sol; perto
cresce o viveiro dos eucaliptos finos,
difíceis e pequenos, plantados com raiz funda durante o
ano anterior,
e dos pinheiros que
os homens semearam e com força
cresceram desde o ano
anterior ao anterior;
qual um
golpe de machado
certeiro e muito
seco, estala
um distúrbio
ao longe de entre
os ramos, um
vibrar de asas
para o vento e qualquer coisa de larvar com pêlos germinando; é o fogo;
vem sobre os seixos
respirando redondo um
ritmo compassado
e muito fundo
num rugir de animais
de dentro da floresta;
nas águas houve círculos
de peixes, um
touro chorou dentro
do mito e um
cavalo com
as crinas testeiras incendiadas e o peito branco de
suor morreu sob
uma nuvem; o fogo
cobria a terra e o ar
as águas, as cópulas
dos elementos eram longas e lentas;
dizem que o chefe
que escapou ao fogo
não voltou; um
touro o levou e não
o trouxe vivo; o seu
gémeo e ele no ventre
da virgem ficaram para sempre; o fogo
estava ali, porém
vinha de sempre,
desde quando
a terra se vestira de gente,
de faunas e de flores,
de florestas; no instante
do fogo o medo
se apossou dos homens da planície,
a quem os deuses
Ataegina e Corneus desapareceram; foi certamente
então que
vieram estrangeiros e lhes tiraram tudo,
violaram as mães, estupraram as filhas; depois do fogo não mais
nasceram sémenes das flores e as serpentes fugiram para as águas, os seus olhos não mais arrebataram aves,
e os gatos, sós
como crianças
deixadas nos portais
das ruas de noite
sem ninguém,
miaram para ninguém;
as águas infiltradas queimaram as
raízes; porém foram plantadas muitas cruzes e elas
frutificaram amplamente; dum fogo assim
nasceu o Alentejo, e nele uma tragédia despida de horizontes;
horizontes de fogo;
mar de fogo;
o fogo; fogo
no Alentejo; pelas manhãs de verão, quando o
calor fatiga como
agora e, na vila,
a gente se recolhe à sombra dos portais,
ou em
noites varridas de invernos
e de ventos, quando
em volta
das braseiras se juntam as famílias (a pata do vento cobre a vila, com chuva nos telhados e
a névoa, como
um fantasma branco, doloroso
e mudo, corre as ruas
desertas, brilhantes de humidade, por onde passos fogem ao silêncio
das casas; oh,
medo que tudo invades e tudo
deixas morto,
a alma, se ainda
existe, está nos corpos
fechada, com gordura
por cima,
e braseiras e sono; o tempo já não é «número
do movimento» e a ordem
deste, o ritmo, não
é mais, pois tudo está aqui como preso da morte; a vila dorme,
dorme; quem imagina a vida de tantos seres pequenos,
sem interesse
e contudo querendo ser
humana? O mísero
empregado de cartório,
de armazém, que
à noite, sob
essa luz mortiça
e alta e sem
calor do tecto, escreve e labora contas que os mortos só
conferem, se conferem; ele trabalha, no seu
trabalho sórdido,
despido de horizontes
e de esperança, para
um certo
senhor invisível,
absurdo, que
o vigia e domina pelos
olhos da fome;
sai do emprego tarde,
gelado, sem paixão,
aguentando a vida na sua iniquidade; para quê este trabalho, para quê estes escravos? (escravo,
não te
esqueças que és escravo,
que a tua condição
não é certa
nem justa,
antes velha,
imunda e destrutível; não hesites, que
o tempo não
consente a hesitação; não
penses na mulher nem
nos teus
filhos, mas
só nos
filhos dos teus
filhos, nos
netos que
nascerem quando estiveres já morto, e que nascerão livres
se quiseres; crê, escravo, quer; não
adormeças de tal modo
que um
dia acordes
escravo já
para além da morte; não confies tudo à eternidade;
o tempo não
consente que continues dormindo pelo eterno a dentro; acorda,
vive, vê; não
te enroles no sono
como na mulher
quente; não
te esqueças do tempo;
que te
lembres a tempo; põe o despertador antes
das sete; estamos na primavera e às sete
é já dia;
toma cuidado
não acordes
demasiado cedo;
é preciso, porém,
estar preparado
antes de vir
o dia, e ouvir
os mais pequenos
movimentos da noite,
com os seus
velhos monstros
paquidérmicos; é necessário que
durmas vigilante, que
descanses desperto; e que saibas o sabor negro do tempo; e que
sejas por fim
o próprio tempo)
o senhor será sempre
senhor, enquanto
for; longe, talvez,
nas remotas cidades, homens lutam e esperam por
qualquer coisa
outra; é possível,
e achamos até que
fazem bem; mas
nós, os que
aqui vegetamos enterrados há tanto, sujeitos
a esta rotina sem
apelo, por
que esperaríamos senão
pelo jantar? Senhor, tem piedade
dos que arrotam de fome,
e salva-os ao menos, como esperam, desta pocilga,
lá, em
outra parte;
porque, se para
isto nos
fizeste, criaste, que havemos de pensar de ti senão bem mal, que podes limpar as mãos da bela obra feita? Que ao menos o jantar não esteja hoje salgado, e
que a chuva
e o vento acabem cedo,
e que durmamos esta noite
em paz;
que ainda
assim as nossas digestões
sejam mais fáceis, e que o almoço de
amanhã não
esteja, Senhor Deus,
salgado), subitamente surge um grito de sereia crescendo
e decrescendo como quem
pede auxílio; é o fogo,
um desastre,
uma faísca verde
que caiu num montado
e o incendiou de raiva; e os bombeiros acorrem, levantam-se se dormem, interrompem
a merenda, o almoço,
o jantar, deixam os seus
trabalhos e, seguros,
sem uma hesitação
no olhar firme,
correm para o quartel,
vestem-se e partem; e os miúdos os
seguem, vão gritando; e a vila agita a vida; Jó os segue também
e pede que os deixem ir
com eles,
vai com eles;
os carros vermelhos
atravessam a vila buzinando, tocando, com o jeep e
a maca de socorros
atrás; o fogo
agita a vida;
e a vila acorda,
vive, nasce sob o baptismo inicial do fogo.
Almeida
Faria
(A Paixão – 1963)
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