segunda-feira, 5 de dezembro de 2016

OS CICLISTAS - PAPINIANO CARLOS

(9/11/1918 - 5/12/2012)
OS CICLISTAS
A Vascode Magalhães-Vilhena

Com um surdo rumor de escavadora
ressoa no subsolo a tua voz.
Muitos tapam os ouvidos delicados.
Outros escondem-se para a não ouvir.
E outros estremecem de pavor.
Mas, rápidos, os ciclistas pedalam
na bruma dos subúrbios ao teu encontro.
Rosto baixo, mãos no guiador, pés
bem firmes nos pedais, geram
o movimento, o ritmo alado
das máquinas frágeis que cavalgam
ao amanhecer. Perpassam como espectros
sob a bruma e juntam-se, confluem,
avançam como um rio poderoso
sobre a cidade adormecida.
Os ciclistas. Os que erguem os andaimes
E fazem girar os fusos dos teares.
Os que movem as gruas. Os que transportam
O dinamite nas mãos calosas.
Os que não sabem envelhecer de tédio
à mesa do café nem vivem de mercadejar
preservativos, palavras, casas pré-fabricadas.
Os que não sonham morrer em glória
como jovens deuses trespassados na batalha.
Os que não hão-de apodrecer, como muitos
de nós, roídos de lepra e desespero.
Esses merecem bem a tua voz, Orfeu.

        
 PAPINIANO CARLOS
in: “A ave sobre a cidade”, 1973

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