quinta-feira, 1 de dezembro de 2016

Uma Sepultura em Londres - Jorge de Sena




Uma Sepultura em Londres

No frio e no nevoeiro de Londres,
numa daquelas casas que são todas iguais,
debruça-se sobre todas as dores do mundo,
desde que no mundo houve escravos.
As dores são iguais como aquelas casas
modestas, de tijolo, fumegando sombrias, solitárias.
Os escravos são todos iguais também:
De Ramsés II, de Cleópatra, dos imperadores Tai-Ping
De Assurbanípal, do Rei David, do infante
D. Henrique, dos Sartoris de Memphis, dos
civilizados barões do imperador D. Pedro II.
Ou das «potteries», ou da Silésia, de África,
da Rússia. (E o coronel Lawrence da Arábia
chegou mesmo a filosofar sobre a liberdade moral
dos jovens escravos com quem dormia.)
No frio inenarrável das eras e das gerações de escravos,
que nenhuma lareira aquece no seu coração,
escreve artigos, panfletos, lê interminavelmente,
e toma notas, historiando infatigavelmente
até à morte. Mas o coração, esmagado
pelo amor e pelos números, pelas censuras
e as perseguições, arde, arde luminoso
até à morte. – Eu quero ver publicadas
as suas obras completas – diz-lhe o discípulo.
– Também eu – responde. E, olhando as montanhas
de papéis, as notas e os manuscritos, acrescenta com
esperança e amargura – Mas é preciso
escrevê-las primeiro -.
Como têm sido escritas e rescritas! Como
não têm sido lidas. Mas importa pouco.
Naquela noite – creiam – a neve inteira
derreteu em Londres. E houve mesmo
um imperador que morreu afogado
em neve derretida. Os imperadores, em geral,
libertam os escravos, para que eles fiquem mais baratos,
e possam ser alugados sem responsabilidade alguma.
O coronel Lawrence (como anotámos acima), com os seus jovens escravos,
também tinha um contrato de trabalho. Mais tarde,
criou-se mesmo a previdência social.
No frio e no nevoeiro de Londres, há, porém,
um lugar tão espesso, tão espesso,
que é impossível atravessá-lo, mesmo sendo
o vento que derrete a neve. Um lugar
ardente, porque todos os escravos, desde sempre todos
aqueles cuja poeira se perdeu – ó Spártacus –
lá se concentram invisíveis mas compactos,
um bastião do amor que nunca foi traído,
porque não há como desistir de compreender o
mundo. Os escravos sabem que só podem
transformá-lo.
Que mais precisamos de saber?


1962
Em seu “Discurso Diante do Túmulo de Marx”, Engels escrevia que “o maior pensador de nossos dias parou de pensar”. Poema de Peregrinatio ad loca infecta (Poesia III), “Uma Sepultura em Londres” vem acompanhado por uma nota do autor: “Em 1969, na 1a. edição desta Peregrinatio, não podia anotar-se, para notícia dos distraídos, que esta sepultura era obviamente a de Karl Marx”. Hoje, não havendo qualquer dúvida sobre o homenageado, o poema-lápide dedicado a Marx permanece como monumento da presença de seu pensamento na poesia seniana e do esforço de Sena em manter sempre vivo o diálogo com as testemunhas da História, para que, mesmo que na mente e na obra de outros, não parem de pensar nunca.

Sem comentários: