sexta-feira, 31 de março de 2017

Liberdade - Mário Cesariny

Liberdade.

A liberdade conhece-se pelo seu fulgor.
Quatro homens livres não são mais liberdade do que um só. Mas são mais revérbero no mesmo fulgor.
Trocar a liberdade em liberdades é a moda corrente do libertino.
Pode prender-se um homem e pô-lo a pão e água. Pode tirar-se-lhe o pão e não se lhe dar a água. Pode-se pô-lo a morrer, pendurado no ar, ou à dentada, com cães. Mas é impossível tirar-lhe seja que parte for da liberdade que ele é.
Ser-se livre é possuir-se a capacidade de lutar contra o que nos oprime. Quanto mais perseguido mais perigoso. Quanto mais livre mais capaz.
Do cadáver dum homem que morre livre pode sair acentuado mau cheiro - nunca sairá um escravo
.

Mário Cesariny

quinta-feira, 30 de março de 2017

PRIMEIRO RETRATO DO NATURAL - Alexandre O'Neill


PRIMEIRO RETRATO DO NATURAL

Ela queria perceber o que se passa.
Queria?

Passa a rua às risadas.
«Uscumunistas?»

Gritam flores da jarra.
Estão inocentes?

O telefone terrinta.
É o destino?

Na bandeja de prata, o sedativo.
Por tomar?

Na sala das porcelanas, a senhora.
Por viver.

*

De sentinela à porcelana
está Inês ou Teresa ou Ana
(Maria, deixa-se ver).
Tem à mão uma bengala
para o que der e vier:
«Se os bolchevistas entrarem,
vão ver, vão ver!
As porcelanas inteiras
é que eles não hão-de ter!»

*

Porcelana implora
Senhora insiste.
Até que a levam prà cama,
pauzinho em riste, zangada.


É uma terrina vazia
que em sonhos se suicida
à bengalada.

Alexandre O'Neill

quarta-feira, 29 de março de 2017

De mãos no feno pela tarde inteira... - Eduardo Valente da Fonseca


a ver o tempo correndo no arado,
fomos a descobrir a vida do outro lado
da própria vida que nos é estrangeira.
Vivemos milho, suor, frescura de água,
demos as mãos, vimos flores, falámos
com os homens, mulheres, crianças, tudo,
que vimos removendo admirados
a terra e o seu húmus fundo e mudo.
As nossas mãos correram peles de gado
perderam-se no milho feito grão,
bebemos vinho novo, conversámos
sentados pela erva ou sobre o barro
do nosso mesmo chão.


terça-feira, 28 de março de 2017

Cantar alentejano - Vicente campinas


 
Cantar alentejano

Chamava-se Catarina
O Alentejo a viu nascer
Serranas viram-na em vida
Baleizão a viu morrer

Ceifeiras na manhã fria
Flores na campa lhe vão pôr
Ficou vermelha a campina
Do sangue que então brotou

Acalma o furor campina
Que o teu pranto não findou
Quem viu morrer Catarina
Não perdoa a quem matou

Aquela pomba tão branca
Todos a querem p´ra si
Ó Alentejo queimado
Ninguém se lembra de ti

Aquela andorinha negra
Bate as asas p´ra voar
Ó Alentejo esquecido
Inda um dia hás-de cantar

  

Este poema de António Vicente Campinas  é habitualmente atribuído a José Afonso, autor da belíssima música da popular canção. Quando José Afonso publicou a primeira edição de “Cantares” (Nova Realidade, Tomar, 1967) não indicou a autoria do poema. Para quem tenha conhecido o Zeca, o motivo para tal ‘esquecimento’ só pode ter sido a situação de clandestinidade em que Vicente Campinas se encontrava.

domingo, 26 de março de 2017

A INDESEJADA - Darcy Ribeiro

A INDESEJADA

Aí estão eles, os da terceira idade.
Gregários, vivem aos bandos.
Sentados, jogando cartas, andando devagar.
Conversando pretéritos assuntos.
Olhando tristes os outros viverem.

Antigamente, todos seriam avós, vovozinhos.
Hoje, são sogros, os chatos dos sogros.
Uns são viúvos, outros largados, poucos.
Muitos deles, os mais, ainda casados.
As mulheres duram demais.

Órfãos de seus filhos, ocupadíssimos.
Não reclamam, resmungam disfarçados.
Estão todos aflitos, na espera
Da indesejada, que tarda.
Tarda, é certo, mas virá. Inexorável.