Poema quase
triste
|
|
Os homens passam sem darem por nada
carregados assim como eles vão
com suas sombras a ganharem gibas, com os seus olhos a ficarem baços, cheios de presbitia e astigmáticos. Não lhes importa que nos frutos estejam confissões de poetas e de heróis. Os homens passam e não vêem nada,
olham apenas para as suas vidas,
para a filha doente ou para os filhos mortos. Não se apercebem das árvores e das rochas, sangue e nervos da terra. Seguem tristes e com os seus olhares
voltados para dentro,
para os seus crimes ou para os seus sonhos. Não param a escutar o coração da terra que bate, tranquilo, sob o chão. Tristemente aguardam os eléctricos que os hão-de levar a suas casas de paredes forradas pelos retratos
dos fantasmas antigos e até próximos.
É sem amor que trincam os frutos
coloridos no sangue de todos os mortos
e nem pensam que a terra se abrirá
a seus corpos alheios, certo dia.
Procuram suas chaves
e, de cabeça baixa, penetram em casa,
sentam-se à mesa e choram
com suas mulheres, livros, diários íntimos, mas não falam sequer à Natureza que lhes oferece, em vão, todos os seus segredos e mistérios. Deitam-se sonolentos,
fecham a luz e dão-se aos pesadelos
ou aos sonhos de quando eram meninos. . . Embriagam-se ou matam-se
e entregam-se aos vícios ou às lágrimas. . .
Tristes os homens passam sem verem que a terra lhes oferece juntamente com frutos e canções.
António Rebordão Navarro
A Condição Reflexa
Poemas (1952 - 1982) Imprensa Nacional Casa da Moeda |
quinta-feira, 9 de março de 2017
Poema quase triste - António Rebordão Navarro
Subscrever:
Enviar feedback (Atom)
Sem comentários:
Enviar um comentário