terça-feira, 3 de julho de 2018

O dia incomum de um exilado vivendo então em Vancouver - Sérgio Godinho

O dia incomum de um exilado vivendo então em Vancouver

Era muito longe, ou seja
no Pacífico
Notícias de jornal, confusas:
tanques ocupam a praça central
de Lisboa
Digo-me: mal eles sabem que se chama
Rossio
mas digo-me também: se é a revolução
daquele do monóculo
pouco tenho a esperar
Depois espanto-me: como é possível
que libertem assim
sem mais nem menos
os presos políticos
e prometam a autodeterminação
de colónias
economicamente tão preciosas?
O povo saiu à rua e foi isso
que mudou tudo, explicam-me então
pelo telefone.
No dia em que abalei
para aqui ficar
deixei sem remorsos:
a minha horta
cujos legumes tantas vezes protegi
um trabalho que tanto suspeitava amar
e os amigos que, querendo ser generosos,
me disseram:

«Vai, vais ver que não te arrependes»

Esquece-se muita coisa...
à força de ver caras novas
não sei se me lembro das antigas
embora as veja tão bonitas
e disponíveis
na memória
e por vezes em fotografia.

POEMABRIL, Fora do Texto, Coimbra, 1994


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