segunda-feira, 11 de janeiro de 2021

Poema de Daniel Abrunheiro

 

II

 

O velho homem ainda trabalha muito, agora em casa só. 

Dorme & come no piso térreo, trabalha na sobreloja. 

Ainda é firme o seu traço, voluntariosa a sua caligrafia. 

Está em presença de tudo o que perseguiu & persegue. 

A cintilação marinha, o bilhete autógrafo, o frasco com feijão, 

a Lua apanhada nua, a chávena meia, a camisa à escocesa: 

tudo lhe presta matéria & correlação, que ele retribui. 

Jamais desconheceu que é pela solidão que se lá vai. 

Se se lá chega, é outra questão – e bem diversa ela é. 

Foi rapaz, sim, cumpriu essa idade penitenciária. 

 

A maior probabilidade é a obra não sobreviver. 

Os herdeiros cuidam mais do que possa vender-se. 

É da natureza de quem herda o não valer uma merda. 

Desenhos, estatuetas, poemas, pincéis & lápis? 

Giros, engraçadas, ilegíveis, velhos, no côto. 

O velho sabe, não se perturba, trabalha mais. 

Não alinha em carnavais, natais, esponsais de família. 

O sangue genealógico é tão aguadilha como o de estranhos. 

A caridade é calculismo visando celestes alvíssaras. 

Não tem telefone, não telefona, tem uma cadela a quem falar. 

 

Dá voltas mais lentas mas dá-as como sempre deu. 

Dando-as, vai filtrando sinais humanos & índices naturais: 

a velhota limpando os óculos, a nuvem prenhe de pureza alta. 

Um relvado de praceta medido a passos de pássaros. 

Para tudo, traço firme & voluntariosa caligrafia. 

Conversar na extrema do balcão com concidadãos de afim idade. 

Tomar o refresco em esplanada de bairro quieto. 

Tratar das oficialidades civis, não retrasar obrigações. 

Levar a cadela à clínica, fazê-la sentir solidariedade. 

Falar com ela em casa, à hora da lareira & do chá. 

Retirado do blog Daniel Abrunheiro, com todo a simpatia.

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