quarta-feira, 7 de dezembro de 2022

O tradutor - Armando Silva Carvalho


O tradutor


Lentamente traduzo a ruptura do mundo

Com o novo século.
Escrevo com os olhos ardidos
Pelas novas visões do passado.
Levanto um braço e procuro
Mais uma palavra suada.

Faço o trabalho no brilho embaciado
Da noite.
Retiro lentamente da cabeça
Incrustações de vícios
Pequenas recordações de males menores
Ácidas partículas.

Sorvo o tédio.
Agora que o silêncio é uma crosta de sangue
Nos meus ombros
Recomeço a coçar-me.
Valerá a pena? não faço disto a festa.
Sou simples.
Sou o intermédio.

Se o meu olhar souber seguir as novas pistas
Pisarei paciente a luz dinâmica
Ouvirei o murmúrio dos ordenadores
Sentirei os sinais dos guias intérpretes
Despirei essas criaturas secas
Contíguas ao terror
E conformadas.

Sentadas nas mais recentes palavras
As multidões querem negociar
A tradução do amor nas almas desarmadas.

Mas eu não esqueço.
Faço como quem transporta diamantes
No estômago
Prata na cabeça dos dedos.

Desmontar pessoas é um ofício divino,
Vil, apaixonado.
E as pessoas amam o dextro financeiro,
A silhueta de ouro, o desnaturado.

Todas as noites apaziguam o espírito.
E eu contemplo com o pavor
Lúcido dos cegos
A risonha coroa do triunfo.

Ao longe as crianças despertam
Com o olhar turvo de cimento e espiam
A madrugada os intraduzíveis apelos ao conhecimento.
Surgem os primeiros revérberos do sol
E eu passo a mão abstracta, ingénua, envelhecida
Pelos seus cabelos eriçados
De sono.

Os seres vivos desaparecem da superfície do texto.
E eu sonhei uma prótese da escrita
Uma conversão em minérios de sexo
Em filmes ortopédicos
Em caligrafias expostas nas paredes
Do mundo.

Mas o sonho não é proposta digna deste século
É um esboço manual da delinquência.
Um dedo singular na cúpula divina
Da nossa impossível renascença.

E por isso traduzo.


Armando Silva Carvalho

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