O tradutor
Lentamente
traduzo a ruptura do mundo
Com o novo século.
Escrevo com os olhos ardidos
Pelas novas visões do passado.
Levanto um braço e procuro
Mais uma palavra suada.
Faço o trabalho no brilho embaciado
Da noite.
Retiro lentamente da cabeça
Incrustações de vícios
Pequenas recordações de males menores
Ácidas partículas.
Sorvo o tédio.
Agora que o silêncio é uma crosta de sangue
Nos meus ombros
Recomeço a coçar-me.
Valerá a pena? não faço disto a festa.
Sou simples.
Sou o intermédio.
Se o meu olhar souber seguir as novas pistas
Pisarei paciente a luz dinâmica
Ouvirei o murmúrio dos ordenadores
Sentirei os sinais dos guias intérpretes
Despirei essas criaturas secas
Contíguas ao terror
E conformadas.
Sentadas nas mais recentes palavras
As multidões querem negociar
A tradução do amor nas almas desarmadas.
Mas eu não
esqueço.
Faço como quem transporta diamantes
No estômago
Prata na cabeça dos dedos.
Desmontar pessoas é um ofício divino,
Vil, apaixonado.
E as pessoas amam o dextro financeiro,
A
silhueta de
ouro, o desnaturado.
Todas as noites apaziguam o
espírito.
E eu contemplo com o pavor
Lúcido dos cegos
A
risonha coroa
do triunfo.
Ao longe as crianças despertam
Com o olhar turvo de cimento e espiam
A
madrugada os intraduzíveis apelos ao conhecimento.
Surgem
os primeiros revérberos do sol
E eu passo a mão abstracta, ingénua, envelhecida
Pelos seus cabelos eriçados
De
sono.
Os
seres vivos desaparecem da superfície do texto.
E eu sonhei uma prótese da escrita
Uma conversão em minérios de sexo
Em filmes ortopédicos
Em caligrafias expostas nas paredes
Do
mundo.
Mas
o sonho não é proposta digna deste século
É um esboço manual da delinquência.
Um dedo singular na cúpula divina
Da
nossa impossível renascença.
E por isso traduzo.
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