segunda-feira, 26 de fevereiro de 2024

POEMA DO FUTURO -- António Gedeão

24 de Novembro de 1906 - 9 de Fevereiro de 1997

 

POEMA DO FUTURO

 

Conscientemente escrevo e, consciente,

medito o meu destino.

No declive do tempo os anos correm,

deslizam como a água, até que um dia

um possível leitor pega num livro

e lê,

lê displicentemente,

por mero acaso, sem saber porquê.

Lê, e sorri.

Sorri da construção do verso que destoa

no seu diferente ouvido;

sorri dos termos que o poeta usou

onde os fungos do tempo deixaram cheiro a mofo;

e sorri, quase ri, do íntimo sentido,

do latejar antigo

daquele corpo imóvel, exhumado

da vala do poema.

Na História Natural dos sentimentos

tudo se transformou.

O amor tem outras falas,

a dor outras arestas,

a esperança outros disfarces,

a raiva outros esgares.

Estendido sobre a página, exposto e descoberto,

exemplar curioso de um mundo ultrapassado,

é tudo quanto fica,

é tudo quanto resta

de um ser que entre outros seres

vagueou sobre a Terra.

 

António Gedeão

in 'Poemas Póstumos'

 

sábado, 24 de fevereiro de 2024

Largada - Sebastião da Gama



Largada

Ai a tão rara, fugitiva,

Certeza de vencer!...

Não me falem de Esperança! Quero é esta

Decisão nas palavras e nos passos. 

 

Navios, verdes de limos nas amarras, arrancai

Do cais dos meus sentidos!

Em mim não haja agora nem um

Que não seja bandeira desfraldada

Ou vela de navio.


 Meus mais longínquos pensamentos,

 Soltem-se ao claro Sol desta certeza.

 vinquem de Acção e Vida o ar da noite.

 

 Ao Mar!, ao Mar!,

 Com um peso de ferro atado aos pés,

 o cadáver já podre

 de meus desânimos inglórios!

 

 E eu, verdadeiro, surja,

 Sorrindo a todos o vão desaire.

 Rasguem velas, os mastros estilhacem,

 quantos ventos vierem.

 Verdadeiro por fim, cá vou.

 Nem um momento só,

 Largo das mãos meu leme de certeza.

 

_Ah!, conquistado a golpes de coragem!,

Ah!, ganho como prémio o que é bem meu

Por direitos legítimos de Moço!


Sebastião da Gama

(in Cabo)


segunda-feira, 19 de fevereiro de 2024

26 de setembro de 1945 - Nazim Hikmet

 

26 de setembro de 1945

 

Nos escravizaram,

nos aprisionaram:

        a mim dentro das paredes,

        a você, fora delas.

 

A nossa condição é insignificante.

O pior é:

conscientemente ou não,

carregar a prisão dentro de si...

A maioria das pessoas está destinada a essa situação,

as pessoas que são honestas, trabalhadoras e boas

e que merecem ser amadas assim como eu as amo...

 

Nazim Hikmet

26 Eylül 1945

Bizi esir ettiler,

bizi hapse attılar:

                       beni duvarların içinde,

                                            seni duvarların dıında.

Ufak ibizimkisi.

Asıl en kötüsü:

bilerek, bilmeyerek

içinde taıması...

birçou düürülmü,

namuslu, çalıkan, iyi insanlar

ve seni sevdiim kadar sevilmeye lâyık...

Bizi esir ettiler,

bizi hapse attılar:

beni duvarların içinde,

seni duvarların dışında.

Ufak iş bizimkisi.

Asıl en kötüsü:

hapisaneyi insanın kendi içinde taşıması...

İnsanların birçoğu bu hale düşürülmüş,

namuslu, çalışkan, iyi insanlar

ve seni sevdiğim kadar sevilmeye lâyık...

 

 

quinta-feira, 15 de fevereiro de 2024

Em paz - Amado Nervo

Em paz

Perto do meu ocaso, eu te bendigo, ó Vida,
porque nunca me destes esperança falida
nem trabalhos injustos, nem pena imerecida.

Porque vejo no fim de meu rude caminho
que fui eu o arquiteto de meu próprio destino;
que se os méis ou o fel eu extraí das cousas
foi que nelas pus mel ou biles amargosas:
quando plantei roseiras, não colhi senão rosas.

Às minhas louçanias vai suceder o inverno;
mas tu não me disseste que maio fosse eterno!
Julguei sem fim as longas noites de minhas penas;
mas não me prometeste noites boas apenas,
e, afinal, tive algumas santamente serenas…

Amei e fui amado, o sol beijou-me a face.
Vida, nada me deves! Vida, estamos em paz!

 Amado Nervo

domingo, 11 de fevereiro de 2024

MEU GALOPE É EM FRENTE - Mário Dionísio

MEU GALOPE É EM FRENTE

 

Direis que não é poesia

e a mim que importa?

Eu canto porque a voz nasce e tem de libertar-se.

E grito porque respondo

às lanças que me espetam

e aos braços que me chamam,

E porque, dia e noite, minhas mãos e meus olhos,

por estranhas telegrafias,

dos cantos mais ignotos

e das linhas perdidas

e dos campos esquecidos

e dos lagos remotos,

e dos montes,

recebem longas mensagens e comunicações:

para que grite e cante.

O meu grito e meu canto é a voz de milhões.

Por isso que me importa?

Eu canto e cantarei o que tiver a cantar

e grito e gritarei o que tiver a gritar

e falo e falarei o que tiver a falar.

Direis que não é poesia.

E a mim que importa

se eu estou aqui apenas para escancarar a porta

e derrubar os muros?

E a mim que importa

se vós sois afinal o que hei-de ultrapassar

e esmigalhar

em nome

de todos os futuros?

Eu sigo e seguirei,

como um doido ou um anjo,

obstinado e heróico a caminho de nós

em palavras e acções

por todos os vendavais

e temporais

e multidões

nos cantos mais ignotos

e nas linhas perdidas

e nos campos esquecidos

e nos lagos remotos

e nos montes

- por terra, mar e ar.

Direis que não é poesia

E a mim que importa!

Convosco ou não, meu galope é em frente.

Pertenço a outra raça, a outro mundo, a outra gente.

É andar, é andar!

 

Mário Dionísio

 

quinta-feira, 8 de fevereiro de 2024

RECUSO-ME - João Apolinário

RECUSO-ME

 

Recuso-me a ficar amolecido

Tragicamente cilindrado

E muito antes de lutar - vencido

E muito antes de morrer - violado.

Recuso-me ao silêncio e à mordaça

Serei independente, livre e exacto

A verdade é uma força que ultrapassa

A própria dimensão em que combato.

Recuso-me a servir a violência

Embora a minha voz de nada valha

Mas que me fique ao menos a consciência

De que tentei romper esta muralha.

Recuso-me a ter medo e a estiolar

Na concha dos poetas sem mensagem

Que me levem o corpo e a coragem

Mas que fique esta voz para cantar.

 

João Apolinário

terça-feira, 6 de fevereiro de 2024

INVENTÁRIO DE DOMINGO - Sidónio Muralha

 



INVENTÁRIO DE DOMINGO


No domingo pastoso e lento
há um relógio realejo
redondo como um bocejo
que rói o tempo e o pensamento.

Há o bairro puído e humilhado,
há sempre o disco usado na vitrola
e há uma lágrima que rola
entre o presente e o passado.

E há a chuva, que prevê o calendário,
e há o tédio, e há a monotonia
banal na sua geometria
que vai da gaiola ao aquário.

E há o amor, um amor assim-assim,
burguês, dominical e burocrático
que seria alegre se não fosse um folhetim.

E há pessoas ancoradas nos salões
horas e horas com olhar fixo e duro
para que os olhos da crianças do futuro
sejam retangulares como televisões.

 Sidónio Muralha

segunda-feira, 5 de fevereiro de 2024

Lénine - Papiniano Carlos

 

Lénine

Sulco de charrua

canto de tractor.

Esta foice é tua

Ó Semeador.

Palavra relâmpago

de fundas raízes

clarim na boca

de quantos povos

quantos países!

Bandeira Cidade

em transformação.

Sol da liberdade.

Terra fecundada

na palma da mão.

Mestre. Camarada.

Papiniano Carlos

Em 1970 escrevi este poema. Tinham passado 100 anos

sobre a data de nascimento de Lénine.

Agora, em Dezembro de 1995 (não clandestino) aqui vos trago

amigos e camaradas esse poema. Honra e glória a Lénine!

E viva a cidade em transformação!

 

Em 21 de janeiro de 1924, morreu aos 53 anos o líder da revolução bolchevique, Vladímir Ílitch Ulianov, ou Lenin

sexta-feira, 2 de fevereiro de 2024

ANTIDEUTERONÓMIO I - Adão Cruz

ANTIDEUTERONÓMIO I

 

A cidade está deserta por dentro e por fora de nós.

Começa a não haver vivalma neste lusco-fusco brumoso

neste irracional azul de um céu de chumbo

nesta descrença de manhãs de sonho

em bicéfalas e barbaras bandeiras de um

mundo informe e medonho.

Seguir em frente no deserto do fim do dia

dilatar a esperança até que raie a claridade

no ventre da manhã de fogo e sangue

entrar na vereda enlameada e fria

dos homens de aço sem perfil e sem destino

virar na esquina sem luz da esperança perdida

no contra-senso divino…

ou voltar para lugar algum.

Como seria bom continuar eternamente

o caminho que nascendo dentro de nós

em fio de regato cristalino

se perde ingloriamente à flor da pele.

Assim que for dia

se dia chegar a ser nesta aparência de paisagem

venham toldar a aurora da razão

e semear ruínas no coração apodrecido das nações

e no cérebro corrompido por obscenas falas

armas e cifrões

de imperiais e acéfalos patrões.

Se libertarmos da nuvem negra

a aurora da nossa interrogação

se impedirmos a negra nuvem

de apagar a luz da inquietação

na incontornável unidade do pensamento e da razão

o poema incendiará as asas do vento

e queimará as garras dos abutres

devolvendo à humanidade algum alento.

A terra engolirá os exércitos genocidas

que à sombra da nuvem negra

de deuteronómicos evangelhos

a ferro e fogo se empanturram de vidas

e se embebedam de sangue

para glória do Senhor dos Exércitos…

e jamais haverá Deuteronómio que resista

por mais petróleo que na terra exista.

Adão Cruz