sexta-feira, 2 de fevereiro de 2024

ANTIDEUTERONÓMIO I - Adão Cruz

ANTIDEUTERONÓMIO I

 

A cidade está deserta por dentro e por fora de nós.

Começa a não haver vivalma neste lusco-fusco brumoso

neste irracional azul de um céu de chumbo

nesta descrença de manhãs de sonho

em bicéfalas e barbaras bandeiras de um

mundo informe e medonho.

Seguir em frente no deserto do fim do dia

dilatar a esperança até que raie a claridade

no ventre da manhã de fogo e sangue

entrar na vereda enlameada e fria

dos homens de aço sem perfil e sem destino

virar na esquina sem luz da esperança perdida

no contra-senso divino…

ou voltar para lugar algum.

Como seria bom continuar eternamente

o caminho que nascendo dentro de nós

em fio de regato cristalino

se perde ingloriamente à flor da pele.

Assim que for dia

se dia chegar a ser nesta aparência de paisagem

venham toldar a aurora da razão

e semear ruínas no coração apodrecido das nações

e no cérebro corrompido por obscenas falas

armas e cifrões

de imperiais e acéfalos patrões.

Se libertarmos da nuvem negra

a aurora da nossa interrogação

se impedirmos a negra nuvem

de apagar a luz da inquietação

na incontornável unidade do pensamento e da razão

o poema incendiará as asas do vento

e queimará as garras dos abutres

devolvendo à humanidade algum alento.

A terra engolirá os exércitos genocidas

que à sombra da nuvem negra

de deuteronómicos evangelhos

a ferro e fogo se empanturram de vidas

e se embebedam de sangue

para glória do Senhor dos Exércitos…

e jamais haverá Deuteronómio que resista

por mais petróleo que na terra exista.

Adão Cruz

 

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