domingo, 16 de fevereiro de 2025

VERDES ANOS (A Carlos Paredes) - Manuel Simões

 

(1925 – 2004)

VERDES ANOS

(A Carlos Paredes)

 

Era um tempo dividido:

manhãs de cinza, tardes de euforia.

Era um tempo de litígio:

noites clandestinas, sinais de asfixia.

Como esquecer-te guitarra de verdes

ramos rompendo a monotonia,

dor do passado, saudade do futuro,

ferida aberta em som tão puro.

Verdes anos que a música prometia:

como ave antiga, o canto nos trazia.

 

Manuel Simões

quarta-feira, 12 de fevereiro de 2025

Cheirado, Cheirado na ONU - Mohammed El-Kurd

 



Cheirado,

Cheirado na ONU,

A data de hoje marca alguma década,

de uma longa e prolixa articulação.

 

Fora do edifício,

o embaixador israelita

protesta-me

com um enorme cartaz.

 

Eu não fiquei surpreendido

com os lavatórios manchados de sangue

na casa de banho

ou com os Camaleões

por toda a parte.

 

Pela quinta vez

mostrei aos meus seguranças

o meu passaporte,

senti-me como uma ameaça natural.

 

Pedi para falar

onde os presidentes falaram.

 

Sem fato, sem gentilezas.

 

Sim, é política e ótica

mas, principalmente,

eu tenho aula depois disto

e um professor dececionado.

 

Sem tempo para engomar

tecidos ou teatralidades.

 

Apenas apertos de mão fugazes,

apenas poemas vencidos.

 

Irei em seguida.

 

Agora, há uma criança no pódio

que gesticula para os seus membros,

que leiloa a sua humanidade.

 

O representante de um estado chora,

outro masturba-se.

 

Para o discurso,

vejo Kwame Ture.

 

Para o jornal,

eu escrevo o mesmo artigo

com antecedência.

 

Pontos de discussão centenários,

a sua atual relevância assustadora,

o roubo, não a rotina

implacável.

 

Esta manhã,

o genocídio continua

entre o rio

e o mar.

 

O vocabulário não é genocida.

A aniquilação é.

 

Desequilíbrio de poder.

 

David contra Golias,

não Maomé contra Moisés.

 

Uma nação sob vigilância.

Outra em psicose.

 

David contra Golias,

não Maomé contra Moisés.

 

Uma nação sob vigilância.

Outra em psicose.

 

Eu quase mergulhei

de cabeça

do palco

para uma orgia de diplomatas.

 

Olá. Bom dia,

emprego atrás de emprego,

tenho desprezo por este conselho.

 

E de forma mais contundente,

desprezo pela lata.

 

Eles só vão parar

o círculo vicioso e idiota

quando os recintos irromperem

em chamas.

 

Parti um membro

nas manchetes, aparentemente,

deixei uma faca no lugar

e os políticos com narizes vermelhos.

 

Na televisão

o comentador elogiou-me

com adjetivos

mas a minha mãe não está orgulhosa.

 

Ela queria que eu tivesse penteado o cabelo.

 

Procurei sem sucesso

hematomas no status quo

enquanto o táxi se afastava.

 

Procurei sem sucesso

hematomas no status quo

enquanto o táxi se afastava.

 

Muitos telefonemas

e agradecimentos

mas eu sou ingrato

e estou atrasado para a aula.

 

Tapo os meus ouvidos para os aplausos.

 

Não se pode liderar sem pisar

traindo os esqueletos

no seu caminho.

 

Sento-me com o cotovelo na mesa.

Ambições humildes.

 

Fora da janela

um mundo grandioso

e eu não quero nada disto.

 

Mohammed El-Kurd


A 29 de novembro de 2021, antes de se apresentar perante a Assembleia Geral das Nações Unidas, o jovem poeta palestiniano Mohammed El-Kurd disse, em tom sarcástico: “Olá comunidade internacional. Obrigado pelos magníficos discursos. Tenho a certeza de que as autoridades da ocupação estão realmente preocupadas neste momento.”

Há dois anos falei na ONU [Organização das Nações Unidas]. Fiz um discurso na ONU por esta altura [do ano], no dia de solidariedade com o povo palestiniano. E ao observar como a ONU, o TPI [Tribunal Penal Internacional] e todos esses espaços têm operado, és recordado de como eles são completamente inúteis. Então eu escrevi este poema sobre discursar na ONU e estou muito interessado em ver como o tradutor interpretará a primeira linha:

terça-feira, 11 de fevereiro de 2025

“Um pouco mais de calma, camarada…” - César Vallejo

César Vallejo por Picasso

“Um pouco mais de calma, camarada…”

“Um pouco mais de calma, camarada;
um muito imenso, setentrional, completo,

feroz, de calma pequena,

ao serviço menor de cada triunfo

e na audaz servidão do fracasso.

 

Sobra-te embriaguez, e não há

tanta loucura na razão, como este

teu raciocínio muscular, e não há

mais racional erro que a tua experiência.

mas, falando mais claramente

e pensando-o em ouro, és aço,

a condição para que não sejas

tonto e recuses

entusiasmar-te tanto pela morte

e pela vida, apenas com a tua tumba.

Necessário é que saibas

conter o teu volume sem correr, sem afligir-te,

a tua realidade molecular inteira

e mais além, a marcha dos teus vivas

e mais aquém, os teus sais lendários.

 

És de aço, como dizem,

desde que não tremas e não 

rebentes, compadre

do meu cálculo, enfático afilhado

dos meus sais luminosos! 

Anda, apenas: resolve,

considera a tua crise, soma, segue,

corta-a, baixa-a, puxa-a,

o destino, as energias íntimas, os catorze

versículos do pão: quantos diplomas

e poderes na borda confiável de teu arranque!

Quanto detalhe em síntese, contigo!

Quanta pressão idêntica, a teus pés!

Quanto rigor e quanto patrocínio!

 

É idiota

esse método de padecimento, 

essa luz modulada e virulenta,

se apenas com a calma fazes sinais

sérios, característicos, fatais.

Vejamos, homem:

conta-me o que me passa,

que eu, mesmo que grite, estou sempre às tuas ordens.”

César Vallejo

Otro poco de calma, camarada...

Otro poco de calma, camarada;
un mucho inmenso, septentrional, completo,
feroz, de calma chica,
al servicio menor de cada triunfo
y en la audaz servidumbre del fracaso.

Embriaguez te sobra, y no hay
tanta locura en la razón, como este
tu raciocinio muscular, y no hay
más racional error que tu experiencia.

Pero, hablando más claro
y pensándolo en oro, eres de acero,
a condición que no seas
tonto y rehuses
entusiasmarte por la muerte tánto
y por la vida, con tu sola tumba.

Necesario es que sepas
contener tu volumen sin correr, sin afligirte,
tu realidad molecular entera
y más allá, la marcha de tus vivas
y más acá, tus mueras legendarios.

Eres de acero, como dicen,
con tal que no tiembles y no vayas
a reventar, compadre
de mi cálculo, enfático ahijado
de mis sales luminosas!

Anda, no más; resuelve,
considera tu crisis, suma, sigue,
tájala, bájala, ájala;
el destino, las energías íntimas, los catorce
versículos del pan: ¡cuántos diplomas
y poderes, al borde fehaciente de tu arranque!
¡Cuánto detalle en síntesis, contigo!
¡Cuánta presión idéntica, a tus pies!
¡Cuánto rigor y cuánto patrocinio!

Es idiota
ese método de padecimiento,
esa luz modulada y virulenta,
si con sólo la calma haces señales
serias, características, fatales.

Vamos a ver, hombre;
cuéntame lo que me pasa,
que yo, aunque grite, estoy siempre a tus órdenes.

domingo, 9 de fevereiro de 2025

Canto e lamentação da cidade ocupada - Daniel Filipe

 




Canto e lamentação da cidade ocupada

1.
Ei-la a cidade envolta em dor e bruma
Ei-la na escuridão serena resistindo
Hierática Estranha Sem medida
Maior do que a tortura ou o assassínio
Ei-la virando na cama
Ei-la em trajes menores Ei-la furtiva
seminua sensual e no entanto pura
Noiva e mãe de três filhos Namorada
e prostituta Virgem desamparada
e mundana infiel Corpo solar desejo
amor logro bordel soluço de suicida

Ei-la capaz de tudo Ei-la ela mesma
em praças ruas becos boîtes e monumentos

Ei-la ocupada inerte desventrada
com música de tiros e chicote

Ei-la Santa-Maria-Ateia maculada
ignóbil e miraculosamente erecta
branca quase feliz quase feliz

Ei-la resplandecente de amor teoria
e prática nocturna mistério acontecido
doce habitável ah sobretudo habitável
vestido acolhedor café à noite
a voz distante e amada ao telefone

Ei-la que fica e sobrevive
e reflecte neons nos lagos do jardim
mesmo quando partimos e as lágrimas inúteis
roçam de espanto a solidão crescendo

Ei-la a cidade prometida
esperamos por ela tanto tempo
que tememos olhar o seu perfil exacto
flor da raiz que somos
meu amor

2.
Com ternura crescente, insone, canto.
Com simples flores de angústias,
canto.
Em termos de revolta, crise, sonho,
ergo, à mesa do café vazio e enorme,
meu sonho de viagem sem regresso.
Para enganar a solidão, o medo,
digo palavras, música, esperança.

Canto porque estou vivo e amarrado
à condição de ser fiel e agreste.
Porque em vão nos destroem a memória

com máquinas, rodízios, honorários.
Porque o sol torna fulvo o teu cabelo
e apetecem meus lábios os teus seios.

Canto para espantar o espectro indefinido
da besta apocalíptica, medonha.
Canto e louvo o teu sonho, amigo anónimo,
suando e trabalhando, algures oculto.

Canto a tua coragem, general,
confinado na prática e fora dela.
Canto como quem morde, ofende, esmaga
e, exausto, resiste e sobrevive.

Canto para saber que vale a pena
ter voz, músculos, nervos, coração.
à mesa do café, nas ruas, canto.
Nos jardins, nos estádios, sofro e canto.
No quarto abandonado, sonho e canto.
Nos pequenos cinemas rio e canto.
Entre teus braços doces, choro e canto.

Descerro a aurora com palavras graves,
cantando. Reinvento a melodia,
o sol aberto, o amor pelas esquinas,
a marca sensual nos ombros nus,
a memória da infância, a tua face
— e canto.
Inutilmente embora,
canto.

3.
Não fora o grito a faca
de súbito rasgando
a fronteira possível
Não fora o rosto o riso
a serena postura
de cadáver na praia

Não fora a flor a pétala
recortada em vermelho
o longínquo pregão
o retrato esquecido
o aroma da pólvora
a grade na janela

Não fora o cais a posse
do nocturno segredo
a víbora o polícia
o tiro o passaporte
a carta de Paris
a saudade da amante

Não fora o dente agudo
de nenhum crocodilo

Não fora o mar tão perto
Não fora haver traição

4.
Não basta estender as mãos vazias para o corpo mutilado, acariciar-lhe os cabelos e dizer: Bom dia, meu Amor.
Parto amanhã.

Não basta depor nos lábios inventados a frescura de um beijo doce e leve e dizer: Fecharam-nos as portas. Mas espera.

Não basta amar a superfície cómoda, ritual, exacta nos comtornos a que a mão se afeiçoa e dizer: A morte é o caminho.

Não basta olhar a Amante como um crime ou uma injúria
e apesar disso murmurar: Somos dois e exigimos.
Não basta encher de sonhos a mala de viagem, colocar-lhe as etiquetas e afirmar: Procuro o esquecimento.

Não basta escutar, no silêncio da noite, a estranha voz distante, entre ruídos de música e interferências aladas.

Não basta ser feliz

Não basta a Primavera.

Não basta a solidão.

5.
É preciso cantar, é preciso sorrir,
encher a escuridão com árvores sem nome.

Estamos sós no mistério dos nossos quinze anos.
A tormenta passou. A comida arrefece.

A viagem sem história concede-nos a calma:
serenos existimos, ocultos, dominados.

Só o navio de fogo navega sobre as águas
(ponto negro no mapa que não teremos nunca).

No silêncio da espera, murmuramos palavras,
desfraldamos bandeiras, corrompemos o sonho.

Desejamos o amor, completo e derradeiro
como o cheiro do mosto nos lagares de Setembro

— mas olhamos o sexo e não compreendemos
a noite preenchendo um corpo de mulher.
E pura que ela fosse! desfar-se-ia em bruma…
De mãos vazias vamos para o sono comum.

Um cavalo na estepe, o nosso vago anseio
marcando-nos temores na impúbere face.

recolhemos o gesto, a flor primaveril,
o canal dos sentidos debruado de escombros

— e rígidos a planície inútil
com nervuras de sal no rosto imaginado.

6.
Pelo silêncio na planície pela tranquilidade em tua voz
pelos teus olhos verdes estelares pelo teu corpo líquido de
bruma
pelo direito de seguir de mãos dadas na solidão nocturna
lutaremos meu Amor
Pela infância que fomos pelo jardim escondido que não teve
o nosso amor
pelo pão que nos recusam pela liberdade sem fronteiras
pelas manhãs de sol sem mácula de grades
lutaremos meu Amor

Pela dádiva mútua da nossa carne mártir
pela alegria em teu sorriso claro pelo teu sonho imaterial
pela cidade escravizada pela doçura de um beijo à despedida
lutaremos meu Amor

Pelos meninos tristes suburbanos
contra o peso da angústia contra o medo
contra a seta de fogo traiçoeira cravada
em nosso doce coração aberto
lutaremos meu Amor

Na aparência sozinhos multidão na verdade
lutaremos meu Amor

7.
Aqui ainda podemos esquecer-nos
aqui ainda podemos fechar os olhos e sonhar
aqui ainda podemos ignorar voluntariamente
o dragão pela noite

Aqui ainda podemos fingir de homens
aqui ainda podemos sorrir como se nada fosse
aqui ainda podemos jogar obsessivamente o xadrez

Aqui ainda podemos ter pequenas ambições
aqui ainda podemos ser pequenos em tudo
aqui ainda podemos cruzar inteligentemente os braços

Aqui ainda podemos estar mortos e ler o jornal todos os dias
aqui ainda podemos responder a anúncios
aqui ainda podemos ter um tio nas Américas

Aqui ainda podemos ter um rádio portátil
aqui ainda podemos gostar de futebol
aqui ainda podemos ter uma amante oculta

Aqui ainda podemos ir cedo para casa
aqui ainda podemos estar no café com os amigos
aqui ainda podemos ter um jeito marítimo

Aqui ainda podemos
em silêncio esperar.

8.
O que menos importa é o fato surrado
afinal cada qual tem o seu próprio fado

Comer uma só vez por dia não tem importância
é até um bom preceito de elegância

Recear a prisão a pancada as torturas
ora quem os manda meter em aventuras

Não chega o dinheiro para pagar o aluguer
nem para ir ao cinema nem para ter mulher

Disparates Doutra forma o poder cai na rua
e lembrem-se senhores a revolução continua

9.
Mas há a noite. O estar sozinho
e no entanto acompanhado — servo de um deus estranho
cumprindo o ritual jamais completo

mas há o sono. A lúcida surpresa
de um mundo imaterial e necessário,
com praias onde o corpo se desprende.

mas há o medo. Há sobretudo o medo.
Fel, rancor, desconhecido apelo,
suor nocturno, rápido suicídio.

10.
Entanto, enquanto dói,
ouçamos folhetins (de rádio ou doutros):
cavalgam pelo écran fotogénicos potros
e a rapariga beija o seu cow-boy).

A solidão é chaga que rói, rói?
Não pode a vida suportar o mito?
(devora as unhas o espectador aflito,
não vá morrer de tiro ou tédio o herói).

E há quem diga que o diabo foi
o responsável desta história toda.

(nem fomos convidados para a boda
leia-se FIM — da moça e do cow-boy).

11.
E de novo a cidade ó ritmo esquecido
de estranhas convulsões cheiro de pecado visco
mãos esguias pedimos uma esmola negada
suave
deslizar de carros inconcretos

E de novo a terrível sedução da manhã
o jeito da navalha no riso do playboy
a náusea pressentida o tem-de-ser agora
meu amor meu amor ver-nos-emos depois

E de novo a pastora na gravura da sala
o grito da ambulância o conto do vigário
o som da água corrente o choro da criança
tuas mãos distraídas preparando o almoço

E de novo a usura a promessa de emprego
a carta que não chega o anúncio interdito
o rosto seco e ardente frias salas de espera
vá passando por cá talvez tenha mais sorte

E de novo este pão não amassado de lágrimas
mas salgado de pranto mas comido com raiva
com desespero angústia tempero obrigatório
amargo condimento fel e raiz da esperança

Daniel Filipe

(1925-1964)


quarta-feira, 5 de fevereiro de 2025

Nikki Giovanni Meu poema

 

Meu poema

eu tenho 25 anos
mulher negra poeta
escrevi um poema perguntando
preto você pode matar?
se eles me matarem
isso não vai parar
a revolução

eu fui roubada
me parece que eles sabiam
que eu ia ser atingida
eles levaram minha tv
meus dois anéis
minha pintura africana
e minhas duas armas
se eles tirarem minha vida
isso não vai parar
a revolução

meu telefone está grampeado
meu e-mail está aberto
eles me colocaram contra
todas as minhas velhas amizades
e contra todos os meus novos amantes
se eu odiar todas as pessoas negras
e todos os pretos,
isso não vai parar
a revolução

eu tenho medo de dizer
pra minha colega de quarto pra onde eu estou indo
e pavor de dizer
pras pessoas se eu vou mesmo
se eu me sentar aqui
pro resto
da minha vida
isso não vai parar a revolução

se eu nunca mais escrever nenhum poema
ou conto
se eu reprovar
a graduação
se meu carro for apreendido
e meu toca-discos
não tocar
e se eu nunca vir
um dia de paz
ou tiver uma atitude preta significativa
isso não vai parar
a revolução

a revolução
está nas ruas
e se eu ficar
no 5º andar
ela vai continuar
se eu nunca fizer
nada
ela vai continuar

Nikki Giovanni

My poem

i am 25 years old
black female poet
wrote a poem asking
nigger can you kill
if they kill me
it won’t stop
the revolution

i have been robbed
it looked like they knew
that I was to be hit
they took my tv
my two rings
my piece of african print
and my two guns
if they take my life
it won’t stop
the revolution

my phone is tapped
my mail is opened
they’ve caused me to turn
on all my old friends
and all my new lovers
if i hate all black people
and all negroes
it won’t stop the revolution

i’m afraid to tell
my roommate where I’m going
and scared to tell
people if I’m coming
if i sit here
for the rest
of my life
it won’t stop
the revolution

if i never write
another poem
or short story
if i flunk out
of grad school
if my car is reclaimed
and my record player
won’t play
and if i never see
a peaceful day
or do a meaningful
black thing
it won’t stop
the revolution

the revolution
is in the streets

terça-feira, 4 de fevereiro de 2025

Maria Teresa Horta (1937-2025) - VINTE E CINCO DE ABRIL

 

Maria Teresa Horta (1937-2025)

VINTE E CINCO DE ABRIL 

Este é um poema
com saudade da festa...

Dias de vermelho
de damasco e de riso

Das horas de alegria
e de bandeiras, de cravos
rubros postos no vestido

Este é um poema
feito de memória

Da pressa incontida
no passo corrido

De fala crescida
de prisões abertas, de escrita
liberta descobrindo o sentido

Este é um poema recordando
a mudança, da esperança
e do sonho acontecido

Com palavras
do corpo e de lembrança

Exigindo o futuro
a promessa e o grito

Este é um poema

cantando
a liberdade

De lágrimas costuradas
suturando o sorriso

Ousando dizer da ambiguidade
da estranheza do novo
misturado ao antigo

Este é um poema
torneando o avesso

Da luz da madrugada
de uma noz de vidro

Do voo das gaivotas
junto à pele das águas
fazendo do Tejo o seu precipício

Este é um poema
de visitar a História

Da revolução
o ganho
e também o perdido

Da viagem e do mar
da língua portuguesa
onde na paixão me encontro comigo

Maria Teresa Horta, inédito

domingo, 2 de fevereiro de 2025

Se isto é um homem - Primo Levi

Se isto é um homem

Vós que viveis tranquilos
Nas vossas casas aquecidas,
Vós que encontrais regressando à noite
Comida quente e rostos amigos:
Considerai se isto é um homem
Quem trabalha na lama
Quem não conhece paz
Quem luta por meio pão
Quem morre por um sim ou por um não.
Considerai se isto é uma mulher,
Sem cabelos e sem nome
Sem mais forças para recordar
Vazios os olhos e frio o regaço
Como uma rã no Inverno.
Meditai que isto aconteceu:
Recomendo-vos estas palavras.
Esculpi-as no vosso coração
Estando em casa andando pela rua,
Ao deitar-vos e ao levantar-vos;
Repeti-as aos vossos filhos.
Ou então que desmorone a vossa casa,
Que a doença vos entreve,
Que os vossos filhos vos virem a cara.

Primo Levi

quinta-feira, 30 de janeiro de 2025

POEMA ANACRÓNICO - Alexandre O´Neill

POEMA ANACRÓNICO

Gosto dos que não sabem viver,
dos que se esquecem de comer a sopa
(Allez-vous bientôt manger votre soupe,
s… b… de marchand de nuages?»)
e embarcam na primeira nuvem
para um reino sem pressa e sem dever.

Gosto dos que sonham enquanto o leite sobe,
transborda e escorre, já rio no chão,
e gosto de quem lhes segue o sonho
e lhes margina o rio com árvores de papel.

Gosto de Ofélia ao sabor da corrente.
Contigo é que me entendo,
piquena que te matas por amor
a cada novo e infeliz amor
e um dia morres mesmo
em «grande parva, que ele há tanto homem!»
(Dá Veloso-o-Frecheiro um grande grito?..)
Gosto do Napoleão-dos-Manicómios,
da Julieta-das-Trapeiras,
do Tenório-dos-Bairros
que passa fomeca mas não perde proa e parlapié…

Passarinheiros, também gosto de vocês!
Será isso viver, vender canários
que mais parecem sabonetes de limão,
vender fuliginosos passarocos implumes?
Não é viver.

É arte, lazeira, briol, poesia pura!
Não faço (quem é parvo?) a apologia do mendigo;
não me bandeio (que eu já vi esse filme…)
com gerações perdidas.

Mas senta aqui, mendigo:
vamos fazer um esparguete dos teus atacadores
e comê-lo como as pessoas educadas,
que não levantam o esparguete acima da cabeça
nem o chupam como você, seu irrecuperável!

E tu, derradeira geração perdida,
confia-me os teus sonhos de pureza
e cai de borco, que eu chamo-te ao meio-dia…
Por que não põem cifrões em vez de cruzes
nos túmulos desses rapazes desembarcados p’ra
morrer?

Gosto deles assim, tão sem futuro,
enquanto se anunciam boas perspectivas
para o franco frrrrançais
e os politichiens si habiles, si rusés,
evitam mesmo a tempo a cornada fatal!

Les portugueux…
não pensam noutra coisa
senão no arame, nos carcanhóis, na estilha,
nos pintores, nas aflitas,
no tojé, na grana, no tempero,
nos marcolinos, nas fanfas, no balúrdio e
… sont toujours gueux,
mas gosto deles só porque não querem
apanhar as nozes…

Dize tu: – Já começou, porém, a racionalização do
trabalho.
Direi eu: – Todavia o manguito será por muito tempo
o mais económico dos gestos!

Saber viver é vender a alma ao diabo,
a um diabo humanal, sem qualquer transcendência,
a um diabo que não espreita a alma, mas o furo,
a um satanazim que se dá por contente
de te levar a ti, de escarnecer de mim…

Saber viver é vender a alma ao diabo,

Alexandre O´Neill

terça-feira, 28 de janeiro de 2025

O que mais dói - Patativa do Assaré

 

O que mais dói

O que mais dói não é sofrer saudade
Do amor querido que se encontra ausente
Nem a lembrança que o coração sente
Dos belos sonhos da primeira idade.
Não é também a dura crueldade
Do falso amigo, quando engana a gente,
Nem os martírios de uma dor latente,
Quando a moléstia o nosso corpo invade.
O que mais dói e o peito nos oprime,
E nos revolta mais que o próprio crime,
Não é perder da posição um grau.
É ver os votos de um país inteiro,
Desde o praciano ao camponês roceiro,
Pra eleger um presidente mau.


Patativa do Assaré

 Antônio Gonçalves da Silva,

mais conhecido como Patativa do Assaré,

 completaria 112 anos em 2021


sexta-feira, 24 de janeiro de 2025

EM QUE LÍNGUA ESCREVER / NA KAL LINGU KE N NA SKRIBI NEL -

EM QUE LÍNGUA ESCREVER                    NA KAL LINGU KE N NA SKRIBI NEL

 

              (português)                                                                        (kriol)                   

 

Em que língua escrever                                                 Na kal lingu ke n na skribi

 

As declarações de amor?                                              Ña diklarasons di amor?

 

Em que língua cantar                                                     Na kal lingu ke n na kanta

 

As histórias que ouvi contar?                                        Storias ke n contado?

 

 

 

Em que língua escrever                                                 Na kal lingu ke n na skribi

 

Contando os feitos das mulheres                       Pa n konta fasañas di indjeris             

 

E dos homens do meu chão?                                      Ku omis di ña tchon?

 

Como falar dos velhos                                Kuma ke n na papia di no omis garandi

 

Das passadas e cantigas?                                             Di no passadas ku no kantigas?

 

Falarei em crioulo?                                                         Pa n kontal na kriol?

 

Falarei em crioulo!                                                         Na kriol ke n na kontal!

 

Mas que sinais deixar                                           Ma kal sinal ke n na disa

 

Aos netos deste século?                                           Netus di no djorson?    

 

               

 

 Ou terei que falar                                                          O n na tem ku papia

 

 Nesta língua lusa                                                            Na e lingu lusu

 

 E eu sem arte nem musa                                              Ami ku ka sibi

 

                                                                                        Nin n ka tem kin ku na oioin

 

Mas assim terei                                                               Ma si i bin sedu sin

 

palavras para deixar                                                      N na ten palabra di pasa

 

                                                   

 

Aos herdeiros do nosso século                                 Erderos di no djorson

 

                                                                                            Ma kil ke n ten pa konta

 

Em crioulo gritarei                                                       N na girtal na kriol

 

A minha mensagem                                                      Pa recadu pasa

 

Que de boca em boca                                                 di boka pa boka

 

Fará a sua viagem                                                         Tok i tchiga si distino

 

 

 

Deixarei o recado                                                         Ña recadu n na disal tambi

 

Num pergaminho                                                         na um fodja

 

Nesta língua lusa                                                     Na e lingu di djinti

 

Que mal entendo                                                          Pa no netus

 

E ao longo dos séculos                                      ku no erderos bin sibi

 

No caminho da vida                                                     Kin ke no sedu ba

 

Os netos e herdeiros                                           Anos... mindjeris ku omis d’e tchon

 

Saberão quem fomos                                                Ke firmanta no storia

 

Odete Semedo