O medo e a esperança
Tranquilo e devagar entro na aldeia
de mão ao alto aberta em sinal de
paz
Desertas e contudo palpitantes
se encontram ainda as palhotas
No único rosto presente é visível
o medo está atento procurando
antecipar-se
nos meandros da incómoda adivinha
Falo e sorrio e entreteço pontes de
caniço
e não sei estendê-las até à outra
margem:
fechado e atento o rosto em frente
do meu
entremeia um rio sem vau e sem
barcos
de águas opacas e demasiado largo
Procuro na memória de distantes avós
autênticos e críveis sinais de paz
e ao fazê-lo acordo aves de
lembranças
de ventres pejados de sangue e ódios
e apenas avivo o rosto em frente as
cores do medo
Olho o meu braço estendido e nu
inofensivo e pronto à espera do
acolhimento
e no rosto em frente projecta-se uma
sombra
a dolorosa sombra-lembrança de um
chicote
E o medo ganha relevo no rosto
escuro
atento e vigilante à porta da
palhota:
pergunto aos teus olhos e às tuas
costas
à tua carne e ao abismo dos teus
olhos
onde e quando brotou a fonte desse
medo
— como se eu fosse o deus vivo do
raio
e fizesse empalidecer o teu rosto
cor de noite
a ti que nunca me viste e contudo és
valente
e já viste de perto a fome de feras
em liberdade
Quero perguntar de frente aos teus
olhos
e a tua cabeça pende como um ramo
ameaçado de morte com o peso dos
frutos
prestes a perderem-se inúteis em
chão batido
Quero perguntar-te e não sei os
gestos
nem as palavras mágicas ou
compreensíveis
para conjurar a mancha de medo
que ensombra o teu rosto esculpido
em negro
Não sei os gestos e as palavras
mágicas
e todavia não desisto e procuro
certo de haver uma ponte praticável
entre os meus e os teus olhos
erguidos.
- Fernando Couto, em "Rumor de água" (antologia poética)..
[Organização Ana Mafalda Leite]. Maputo: Editorial Ndjira, 2007.