sábado, 14 de junho de 2025

O medo e a esperança - Fernando Couto

 

O medo e a esperança

 

Tranquilo e devagar entro na aldeia

de mão ao alto aberta em sinal de paz

Desertas e contudo palpitantes

se encontram ainda as palhotas 

 

No único rosto presente é visível

o medo está atento procurando antecipar-se

nos meandros da incómoda adivinha

 

Falo e sorrio e entreteço pontes de caniço

e não sei estendê-las até à outra margem:

fechado e atento o rosto em frente do meu

entremeia um rio sem vau e sem barcos

de águas opacas e demasiado largo

 

Procuro na memória de distantes avós

autênticos e críveis sinais de paz

e ao fazê-lo acordo aves de lembranças

de ventres pejados de sangue e ódios

e apenas avivo o rosto em frente as cores do medo

 

Olho o meu braço estendido e nu

inofensivo e pronto à espera do acolhimento

e no rosto em frente projecta-se uma sombra

a dolorosa sombra-lembrança de um chicote

E o medo ganha relevo no rosto escuro

atento e vigilante à porta da palhota:

 

pergunto aos teus olhos e às tuas costas

à tua carne e ao abismo dos teus olhos

onde e quando brotou a fonte desse medo

— como se eu fosse o deus vivo do raio

e fizesse empalidecer o teu rosto cor de noite

a ti que nunca me viste e contudo és valente

e já viste de perto a fome de feras em liberdade

 

Quero perguntar de frente aos teus olhos

e a tua cabeça pende como um ramo

ameaçado de morte com o peso dos frutos

prestes a perderem-se inúteis em chão batido

Quero perguntar-te e não sei os gestos

nem as palavras mágicas ou compreensíveis

para conjurar a mancha de medo

que ensombra o teu rosto esculpido em negro

 

Não sei os gestos e as palavras mágicas

e todavia não desisto e procuro

certo de haver uma ponte praticável

entre os meus e os teus olhos erguidos.

 Fernando Couto

- Fernando Couto, em "Rumor de água" (antologia poética).. [Organização Ana Mafalda Leite]. Maputo: Editorial Ndjira, 2007.

 


quinta-feira, 12 de junho de 2025

O MUNDO NOVO - José Augusto Aires Torres

 

O MUNDO NOVO

 

O mundo que aí vem...

É o que a gente imagina! E o que se espera!

E a pena que se tem

De já não sermos nós a ver a nova era!

Afinal, sem razão, pensando bem:

Se o mundo é sempre novo em cada hora,

E se, nos anos todos que se contem,

Não deve haver dois dias iguais,

Bem podemos, sem pena ir embora...

Que, amanhã, como hoje, como ontem,

Sempre se há-de nascer cedo de mais.

José Augusto Aires Torres

Aires Torres, in Jornal de Felgueiras, n.º 2450, 8 de Agosto de 1959.

terça-feira, 10 de junho de 2025

Há guerras que se perdem - Jesús López Pacheco

 

Há guerras que se perdem

 

“Há guerras que se perdem mas nunca estão perdidas.

Sob a paz, imposta pela guerra,

o povo cala, espera e não se esquece.

Há mortos que não morreram, ideias sempre vivas.

Escrevo-te, Rafael, para dizer

que tudo está acontecendo, entretanto.”

Jesús López Pacheco

 

Hay guerras que se pierden

 

“Hay guerras que se pierden y nunca están perdidas.

Bajo la paz, impuesta por la guerra,

el pueblo calla, espera y no se olvida.

Hay muertos que no han muerto, ideas siempre vivas.

Te escribo, Rafael, para decirte

que está ocurriendo todo, todavía.”

 

quinta-feira, 5 de junho de 2025

Escola da ONU, Jabalia, Gaza - João Pedro Mésseder

 

Escola da ONU, Jabalia, Gaza

 

Sangue nas paredes,

sangue no chão,

sangue nos quadros, nas mesas, nos placards,

sangue nos livros, nos cadernos, nos brinquedos.

 

Durante o sono?

Depois do sono?

 

O alfabeto do sangue,

a subtração do sangue,

a soma do sangue,

a multiplicação do sangue.

 

Não houve divisão,

era todo

sangue palestino.

 

João Pedro Mésseder

(A quem pertence a linha do horizonte) 30-07 2014

 

 

quarta-feira, 4 de junho de 2025

“Sonho americano” - Jesús López Pacheco

 


“Sonho americano”

... sí che la tema si volve in disio.

Dante, Inferno, III, 126

No inferno dos consumidores

os condenados vivem no paraíso triste

da falsa abundância fugitiva.

Envoltos numa neblina de desejos

insatisfeitos, mas sempre renovados.

São livres de comprar vendendo a alma

e, escravos de suas pobres propriedades nunca suas,

não fazem a digestão jamais sem hipoteca.

O crânio lhes perfura, gota a gota,

uma secreta admiração pelos canalhas.

E todos são de todos a cada dia

corretos inimigos sorridentes

que nas primeiras páginas e nos écrans bebem

lentamente o desprezo por si mesmos,

uma desconfiança doentia da vida

e o sonho sujo de viver sem ser humanos.

Jesús López Pacheco

“Sueño americano”

... sí che la tema si volve in disio.

Dante, Inferno, III, 126

En el alegre infierno de los consumidores

los condenados viven en el paraíso triste

de la falsa abundancia fugitiva.

Los envuelve una bruma de deseos

insatisfechos, pero renovados siempre.

Son libres de comprar vendiendo el alma

y, esclavos de sus pobres propiedades nunca suyas,

no hacen la digestión jamás sin hipoteca.

El cráneo les horada, gota a gota,

una secreta admiración por los canallas.

Y todos son de todos cada día

correctos enemigos sonrientes

que en las primeras páginas y en las pantallas beben

lentamente el desprecio por sí mismos,

una desconfianza enferma de la vida

y el sueño sucio de vivir sin ser humanos.

Jesús López Pacheco


domingo, 1 de junho de 2025

Sonambulismo - Joaquim Namorado

 

Sonambulismo

Tombam os dias inúteis:
amanhece, é tarde, anoitece.
Mas a nós que nos importa
ser manhã, meio dia ou noite?!...
Sonâmbula a vida decorre
- nas ruas, a paz larvar dos grandes cemitérios;
dentro de nós, cada um
apodrece.
Enchem-se de títulos vibrantes os jornais
- mas tudo é tão longe...
Passam homens por homens e não se conhecem:
Boa tarde! Bom dia!
Cada um fechado nas suas fronteiras,
os gestos vazios,
a vida sem sentido
- sonambulismo apenas.

Acorda!
Ainda que seja só para o sobressalto,
que as ilusões do sonho se desfaçam
e as esperanças morram todas nessa hora!

Acorda!
ainda que o caminho a percorrer te espante
e o peso da obra a realizar te esmague!

Ainda que acordar seja
morrer depois aos poucos, em cada momento,
dolorosamente


Joaquim Namorado

in 'Agora'