quinta-feira, 25 de setembro de 2025

Primavera nos dentes - João Apolinário

 Uma imagem com pessoa, Cara humana, vestuário, homem

Descrição gerada automaticamente

Primavera nos dentes

 

Quem tem consciência para ter coragem

Quem tem a força de saber que existe

E no centro da própria engrenagem

Inventa a contra-mola que resiste

 

Quem não vacila mesmo derrotado

Quem já perdido nunca desespera

E envolto em tempestade decepado

Entre os dentes segura a primavera

 

João Apolinário


sábado, 20 de setembro de 2025

Portugal Contemporâneo - Camilo Castelo Branco

 

XXII
Portugal Contemporâneo

Não se olvidem jamais os casos sérios,
E as épicas façanhas dos Archotes!
Ó Musa da calúnia, não me contes,
D'esta lusa Calábria altos mistérios.

Fulminavam-se outr'ora os ministérios,
Porque tinham ladrões; depois, o Fontes,
Rasgando á pátria novos horisontes,
Exterminou os Verres deletérios.

Sumiram-se os fatais homens sinistros!
Já não são sacerdotes os ministros
Do vil bezerro d'ouro, ou da bezerra.

No tocante a ladroes, não há nenhum;
Já não se encontram três, nem dois, nem um...
No pinhal da Azambuja e na Falperra.

Camilo Castelo Branco

 

quinta-feira, 18 de setembro de 2025

O Banquete dos Vampiros

 

Os Vampiros

No céu cinzento sob o astro mudo
Batendo as asas pela noite calada
Vêm em bandos com pés veludo
Chupar o sangue fresco da manada

Eles comem tudo, eles comem tudo
Eles comem tudo e não deixam nada
Eles comem tudo, eles comem tudo
Eles comem tudo e não deixam nada

Se alguém se engana com seu ar sisudo
E lhes franqueia as portas à chegada

Eles comem tudo, eles comem tudo
Eles comem tudo e não deixam nada

Eles comem tudo, eles comem tudo
Eles comem tudo e não deixam nada

À toda a parte chegam os vampiros
Poisam nos prédios poisam nas calçadas
Trazem no ventre despojos antigos
Mas nada os prende às vidas acabadas 

Eles comem tudo, eles comem tudo
Eles comem tudo e não deixam nada
Eles comem tudo, eles comem tudo
Eles comem tudo e não deixam nada 

No chão do medo tombam os vencidos
Ouvem-se os gritos na noite abafada
Jazem nos fossos vítimas dum credo
E não se esgota o sangue da manada

Eles comem tudo, eles comem tudo
Eles comem tudo e não deixam nada
Eles comem tudo, eles comem tudo
Eles comem tudo e não deixam nada 

São os mordomos do universo todo
Senhores à força mandadores sem lei
Enchem as tulhas bebem vinho novo
Dançam a ronda no pinhal do rei

Eles comem tudo, eles comem tudo
Eles comem tudo e não deixam nada
Eles comem tudo, eles comem tudo
Eles comem tudo e não deixam nada

Eles comem tudo, eles comem tudo

Eles comem tudo e não deixam nada
Eles comem tudo, eles comem tudo
Eles comem tudo e não deixam nada

Eles comem tudo, eles comem tudo
Eles comem tudo e não deixam nada
Eles comem tudo, eles comem tudo
Eles comem tudo e não deixam nada

Zeca Afonso 

 


domingo, 14 de setembro de 2025

“É preciso avisar toda a gente…” - João Apolinário

 

“É preciso avisar toda a gente…”

 

É preciso avisar toda a gente

dar notícias informar prevenir

que por cada flor estrangulada

milhões de sementes a florir.

 

É preciso avisar toda a gente

segredar a palavra e a senha

engrossando a verdade corrente

duma força que nada detenha.

 

É preciso avisar toda a gente

quefogo no meio da floresta

e que os mortos apontam em frente

o caminho da esperança que resta.

 

É preciso avisar toda a gente

transmitindo este morse de dores.

É preciso imperioso e urgente

mais flores mais flores mais flores.

 

 João Apolinário

A força da poesia

Este poema foi dito pelo Armando Caldas (apresentado pelo Correia da Fonseca) em 1966 no Café da Cooperativa Piedense a transbordar de gente com a PIDE à mistura. É difícil descrever a emoção causada: todos, todos chorávamos de raiva pela opressão que sufocava e pela esperança militante que nunca nos deixou.

sexta-feira, 12 de setembro de 2025

No Caminho, com Maiakóvski - Eduardo Alves da COSTA

 

No Caminho, com Maiakóvski

Assim como a criança
humildemente afaga
a imagem do herói,
assim me aproximo de ti, Maiakóvski.
Não importa o que me possa acontecer
por andar ombro a ombro
com um poeta soviético.
Lendo teus versos,
aprendi a ter coragem.

Tu sabes,
conheces melhor do que eu
a velha história.
Na primeira noite eles se aproximam
e roubam uma flor
do nosso jardim.
E não dizemos nada.
Na segunda noite, já não se escondem:
pisam as flores,
matam nosso cão,
e não dizemos nada.
Até que um dia,
o mais frágil deles
entra sozinho em nossa casa,
rouba-nos a luz, e,
conhecendo nosso medo,
arranca-nos a voz da garganta.
E já não podemos dizer nada.

Nos dias que correm
a ninguém é dado
repousar a cabeça
alheia ao terror.
Os humildes baixam a cerviz;
e nós, que não temos pacto algum
com os senhores do mundo,
por temor nos calamos.
No silêncio de meu quarto
a ousadia me afogueia as faces
e eu fantasio um levante;
mas amanhã,
diante do juiz,
talvez meus lábios
calem a verdade
como um foco de germes
capaz de me destruir.

Eduardo Alves da COSTA

 Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985. (Poesia brasileira).

 

segunda-feira, 8 de setembro de 2025

ARS - Joaquim Namorado

 

ARS

Os muros brancos da indiferença
desafiam os pintores
a pintar neles a esperança

amarelos sóis girando
roxos violetas azuis
gente animais árvores flores
como há e não há inventados
largas janelas abertas

para a vida e para o sonho
vermelhos entusiasmos
castanhos terra serenos
verdes e verdes terrenos
de horizontes rasgados

onde caibam os países
e os continentes e os mares ainda por descobrir
e o homem caiba inteiro
na verdadeira grandeza
em profundas perspetivas

tudo o que é grande e pequeno
dos outros o que a nós pertence
de nós o que a todos damos
a noite intensa povoada de sóis
que outros dias iluminam

a esperança neles pintada

a Paz o Pão o Amor.

E nas mansardas escuras
com os brancos muros em frente
da gelada indiferença
os artistas febris
esboçam em traços difusos
a própria morte do sonho.

Mas já na sombra da sombra
que sobre os brancos muros se estende
O coro das carpideiras
tece flores de retórica
para coroar-lhes as caveiras
e os conservadores misantropos
dos museus do que já foi
fazem o espólio das artes
com requintes de molduras.

Nos muros brancos da indiferença
gela o frio esquecimento…

Joaquim Namorado

sábado, 6 de setembro de 2025

O peso das fronteiras - Armando Silva Carvalho

 

 O peso das fronteiras
 
Aqui me tens. E o texto.
Partículas. Partes sensíveis, pequenas
vísceras onde ocultam vermes;
uma poeira doce;
depois uma ferida.
 
Repara bem nas frases.
Na lenta fusão das letras sob o estômago.
Feriste-me. E as sílabas de um mar
há tanto, tanto tempo desejado,
vais ouvi-las mais tarde
quando discutes Marx, ofendes os amigos
ou passeias de mão dada com os poderes do tédio.
 
Insisto apenas para que me descubras.
Mais ou menos absorto. Virado de costas
ou simplesmente lendo
sem fome as páginas do tempo.
Nunca pesei muito.
Aliás, repara, quando os textos explodem
e se notam no ar as mil paciências
sobre a paciência;
quando a solidão se escama
como um peixe dúbio,
tudo se torna leve, final, tenso, coeso,
e tu podes ouvir, uivando,
um cão banhado em lágrimas.
 
Eu sou eu. Um cão dentro do túnel.
Já de patas desfeitas. Mais frio. Ao frio.
Roubando, entre os antigos, ossos
roendo, entre os modernos, mitos.
 
Os poetas começam onde acaba isto.
Este penso infectado que me pões nos olhos.
Um país termina. Logo nasce um outro.
E o território és tu.,
população, governo.
Amor administrativo; viva pátria
dos cínicos.
 
Vamos: sacode as armas quietas
da mentira.
Alarga as fronteiras
com teu riso sinistro.
 
Eu, mar, ligadura dobrada
sobre o sol do amor,
ardo na terra. Vou e venho.
E, além do mais, sou isto.


 
Armando Silva Carvalho