terça-feira, 11 de abril de 2023

DE SÚBITO - Fernando Couto

 

DE SÚBITO

 

De súbito,

a tristeza nasce no teu rosto,

suave, densa e silenciosa

- céu da África ainda sem nome nem dia

 

A lua,

tua irmã africana,

irrompeu dos teus ombros,

esplendorosa e suave.

 

E ao gesto diáfano das tuas mãos

incendiou-se a noite.

 

Fernando Couto

 

domingo, 9 de abril de 2023

Na palma da mão - Adão Cruz

 

Na palma da mão

Na palma da mão tenho sonhos de liberdade e silêncio
para enfrentar a morte.
A música treme na palma da mão
como incerteza de futuro e paisagem.
Quem dera adivinhar a cor desta canção cinzenta
que se dissolve no ar que respiro.
Neste verão diferente do outro
eu quero vestir a primavera
sem medo dos tiranos e da moral burguesa.
Quero escolher as palavras do poema
que faz chorar os olhos azuis
e abrir o sonho à luz do meio-dia.
Quero renascer dos versos
que dentro de mim acendem as estrelas
e clamam por outros seres e outros mundos.
Quero seguir quem me chama para outros mares
onde o sol sempre nasce e ilumina.
Creio que a terra ainda é minha
e de espirais de estrelas o meu regresso.
O sol arde nas nuvens
e o mar verde leva-me para habitar contigo
onde quer que estejas.
Não sei aprender a morrer
fora das linhas desta mão incerta
onde as flores de verão deixaram raízes no inverno
que hão-de desabrochar na manhã de sol em que partirei.

Adão Cruz

Médico, poeta e pintor.

Foi médico militar na Guiné por ocasião da Guerra Colonial

 

 

quarta-feira, 5 de abril de 2023

SER UM HOMEM - Ramiro Correia

 

SER UM HOMEM

 

Ser um homem,

Meu filho,

É ter na frente um ideal

De amor, de justiça, de liberdade

E lutar

Para que seja real.

 

Ser um homem.

Meu filho,

É apesar dos golpes sofridos

Entregar intacto ao futuro

O sonho

Dos sonhadores nunca vencidos.


No princípio era a energia

E a energia se fez matéria

E a matéria vida

E o homem surgiu tosco e bruto

E o homem se fez sonho

E o sonho criança

E assim se iluminou o Futuro

 

Poema escrito em 1971, pouco depois da chegada a Santo António do Zaire:


O poema

é esta angústia

de o Sol nascer

dentro de nós

à meia-noite

Ramiro Correia

in 'Ramiro Correia Soldado de Abril'

 

sábado, 1 de abril de 2023

Para vós o meu canto... - Sidónio Muralha

Frase inscrita no memorial aos Mártires de Chicago na

Revolta de Haymarket de 4 de Maio de 1886

Para vós o meu canto...

 

Para vós o meu canto, companheiros da vida!

Vós, que tendes os olhos profundos e abertos,

vós, para quem não existe batalha perdida,

nem desmedida amargura,

nem aridez nos desertos;

vós, que modificais um leito dum rio;

- nos dias difíceis sem literatura,

penso em vós: e confio;

penso em mim e confio;

- para vós os meus versos, companheiros da vida!

Se canto os búzios, que falam dos clamores,

das pragas imensas lançadas ao mar

e da fome dos pescadores, 

- penso em vós, companheiros,

que trazeis outros búzios para cantar...

Acuso as falas e os gestos inúteis;

aponto as ruas tristes da cidade

a crivo de bocejos as meninas fúteis...

Mas penso em vós e creio em vós, irmãos,

que trazeis ruas com outra claridade

e outro calor no apertar das mãos.

E vou convosco. - Definido e preciso,

erguido ao alto como um grito de guerra,

à espera do Dia de Juízo...

Que o Dia do Juízo

não é no céu... é na Terra!

 

 Sidónio Muralha

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quinta-feira, 30 de março de 2023

Sobre o desconcerto do mundo - Luís Vaz de Camões

 

A D. António de Noronha, sobre o desconcerto do mundo:

Quem há que veja aquele que vivia
de latrocínios, mortes e adultérios,
que ao juízo das gentes merecia
perpétua pena, imensos vitupérios,
se a Fortuna em contrário o leva e guia,
mostrando, enfim, que tudo são mistérios,
em alteza d'estados triunfante
que, por livre que seja, não se espante?

 

Luís Vaz de Camões

terça-feira, 28 de março de 2023

Canto da cela 10 - Carlos Loures

 

Canto da cela 10

Este esquife de pedra e de aço em que viajo,
onde navego as horas e as constelações do ódio,
é uma cela imóvel plantada no coração do medo.
Um manto de argamassa e ferro cobre a minha voz.
Não mais a mordaça invisível da falsa liberdade
que ante o Sol floresce impudicamente: agora
a voz abafada por sucessivas grades e paredes,
submersa sob este céu de estuque, sem estrelas;
agora, esta feia gaiola pintada de desespero,
em cujo dorso vai cravada a aranha possessiva
da lâmpada gradeada sempre acesa sobre a porta,
feroz sentinela da noite eterna. E, todavia,
para lá das grades, do corredor, do carcereiro,
a minha face adivinha o hálito fresco da madrugada
e eu navego a madrugada sobre o meu bailique,
sobre este corcel rescendente a suor e a sangue.
Durante as refeições abrem a porta e eu vejo
uma estreita fatia da janela do corredor:
são cinco grades de sé e três de céu
e estes são os melhores momentos do dia.
De pé, como a sopa do estado e olho a catedral –
– tive sorte – fiquei em frente a uma bela rosácea
(o quotidiano de um preso constrói-se
de factos humildes e pequenos).
Na parede cinzenta tatuaram um camelo sem pernas,
Um perfil de mulher com longos cabelos,
Uma estrela, nomes e riscos, muitos riscos,
sulcos no tempo, dias rasgados a golpes de solidão
pelos muitos camaradas que já aqui estiveram
e deixaram a sua passagem impressa nas paredes,
no chão, nas mantas e no ar, neste odor,
escandindo angústia e dolorosa expectativa.

Já não olho a parede – conheço-a de cor –
gasto as horas passeando nestas estreitas tábuas,
quatro metros para lá, quatro metros para cá.
Lá fora
passam elétricos e os pombos rufam as asas.
………………………………………………………
À noite a prisão é um corpo pétreo, mas que pulsa,
As suas velhas empenas vibram sob os nossos dedos,
levam e trazem palavras fraternas.
Com o amor com que Ísis juntou o corpo de Osíris
disperso ao vento, junto letra a letra
uma mensagem que palpita aos meus ouvidos
– coragem companheiro – coragem companheiro.

Ah Companheiros,
nem a pedra e o aço conseguem esmagar as nossas vozes,
elas virão um dia como um rio impetuoso e forte
rasgar a noite em que as querem aprisionar,
destruir as grades da tirania, a opressão
e a crueldade – tudo isto derrubarão
na corrida para o seu oceano – a Liberdade.

Carlos Loures

Em Janeiro de 1965, envolvido na grande vaga de prisões que afectou estudantes e intelectuais das duas organizações clandestinas existentes – o Partido Comunista e a Frente de Acção Popular – fui preso e, antes de ir para a sede da polícia política onde, durante muitos dias, fui interrogado da forma que se sabe ou imagina, estive uns dias encarcerado na cela nº 10 do Aljube, num daqueles desumanos cárceres a que se chamava os «curros», celas estreitas e insalubres onde a luz filtrada através das grades e atravessando o corredor, era a única coisa agradável que acontecia. Quando, três meses depois, fui libertado, a recordação daqueles dias num «curro» do Aljube (que nem foram os piores…), ditou-me este texto que depois publiquei em A Voz e o Sangue. De notar, e não me canso de insistir neste tópico, que a Liberdade que invoco não é esta que vivemos – muito feita de «liberdades» – mas sim aquela que, há mais de 40 anos, eu e muitos sonhávamos alcançar.

 

sábado, 25 de março de 2023

“Não Passarão” - MIGUEL TORGA

 

Dolores Ibárruri, La Pasionaria

“Não Passarão”, é a famosa frase atribuída  a Dolores Ibarruri, mais conhecida por La Pasionaria,

 

“NÃO PASSARÃO”

 

                                   Não desesperes, Mãe !

                                   O último triunfo é interdito

                                   Aos heróis que o não são.

                                   Lembra-te do teu grito:

                                   Não passarão !

 

                                   Não passarão !

                                   Só mesmo se parasse o coração

                                   Que te bate no peito.

                                   Só mesmo se pudesse haver sentido

                                   Entre o sangue vertido

                                   E o sonho desfeito.

 

                                   Só mesmo se a raiz bebesse em lodo

                                   De traição e de crime.

                                   Só mesmo se não fosse o mundo todo

                                   Que na sua tragédia se redime.

 

                                   Não passarão !

                                   Arde a seara, mas dum simples grão

                                   Nasce o trigal de novo.

                                   Morrem filhos e filhas da nação,

                                   Não morre um povo !

 

                                   Não passarão !

                                   Seja qual for a fúria da agressão,

                                   As forças que te querem jugular

                                   Não poderão passar

                                   Sobre a dor infinita desse não

                                   Que a terra inteira ouviu

                                   E repetiu:

                                   Não passarão !


                           MIGUEL TORGA

Poemas Ibéricos, Coimbra, 3ªed., 1985, pp. 74-5)

 

 

sexta-feira, 24 de março de 2023

Este É o Tempo - Sophia de Mello Breyner Andresen

 

Este É o Tempo

 

Este é o tempo
Da selva mais obscura

Até o ar azul se tornou grades
E a luz do sol se tornou impura

Esta é a noite
Densa de chacais
Pesada de amargura

Este é o tempo em que os homens renunciam.

 

Sophia de Mello Breyner Andresen

 

 

terça-feira, 21 de março de 2023

RENDIÇÃO - Miguel Torga

 

 21 de março - Dia Internacional da Poesia

 

RENDIÇÃO

 

                   Vem, camarada, vem

                   Render-me neste sonho de beleza!

                   Vem olhar doutro modo a natureza

                   E cantá-la também!

 

                   Ergue o teu coração como ninguém;

                   Fala doutro luar, doutra pureza;

                   Tens outra humanidade, outra certeza:

                   Leva a chama da vida mais além!

 

                   Até onde podia, caminhei.

                   Vi a lama da terra que pisei

                   E cobri-a de versos e de espanto.

 

                   Mas, se o facho é maior na tua mão,

                   Vem, camarada irmão,

                   Erguer sobre os meus versos o teu canto.

 

Miguel Torga

E no mesmo livro (Libertação) o poema «Provérbio» reforça e completa «Rendição»:

O que vier com alma nova, fique.

Deite a raiz,

Cresça, floresça, frutifique,

E morra se outra seiva o contradiz.

(Torga, 1978: 82)