DE SÚBITO
De súbito,
a tristeza
nasce no teu rosto,
suave, densa
e silenciosa
- céu da
África ainda sem nome nem dia
A lua,
tua irmã
africana,
irrompeu dos
teus ombros,
esplendorosa
e suave.
E ao gesto
diáfano das tuas mãos
incendiou-se
a noite.
DE SÚBITO
De súbito,
a tristeza
nasce no teu rosto,
suave, densa
e silenciosa
- céu da
África ainda sem nome nem dia
A lua,
tua irmã
africana,
irrompeu dos
teus ombros,
esplendorosa
e suave.
E ao gesto
diáfano das tuas mãos
incendiou-se
a noite.
Na palma da mão
Na palma da mão tenho sonhos de
liberdade e silêncio
para enfrentar a morte.
A música treme na palma
da mão
como incerteza de futuro e paisagem.
Quem dera adivinhar a cor desta canção cinzenta
que se dissolve no ar que respiro.
Neste verão diferente do outro
eu quero vestir a primavera
sem medo dos tiranos e da moral burguesa.
Quero escolher as palavras do poema
que faz chorar os olhos azuis
e abrir o sonho à luz do meio-dia.
Quero renascer dos versos
que dentro de mim acendem as estrelas
e clamam por outros seres e outros mundos.
Quero seguir quem me chama para outros mares
onde o sol sempre nasce e ilumina.
Creio que a terra ainda é minha
e de espirais de estrelas o meu regresso.
O sol arde nas nuvens
e o mar verde leva-me para habitar contigo
onde quer que estejas.
Não sei aprender a morrer
fora das linhas desta mão incerta
onde as flores de verão deixaram raízes no inverno
que hão-de desabrochar na manhã de sol em que partirei.
Médico, poeta e pintor.
Foi médico militar na Guiné por
ocasião da Guerra Colonial
SER UM HOMEM
Ser um homem,
Meu filho,
É ter na frente um ideal
De amor, de justiça, de liberdade
E lutar
Para que seja real.
Ser um homem.
Meu filho,
É apesar dos golpes sofridos
Entregar intacto ao futuro
O sonho
Dos sonhadores nunca vencidos.
No princípio era a energia
E a energia se fez matéria
E a matéria vida
E o homem surgiu tosco e bruto
E o homem se fez sonho
E o sonho criança
E assim se iluminou o Futuro
Poema escrito em 1971, pouco depois
da chegada a Santo António do Zaire:
O poema
é esta angústia
de o Sol nascer
dentro de nós
à meia-noite
in 'Ramiro Correia Soldado de Abril'
Frase inscrita no memorial aos
Mártires de Chicago na
Revolta de Haymarket de 4 de Maio de 1886
Para vós o meu canto...
Para vós o
meu canto, companheiros da vida!
Vós, que
tendes os olhos profundos e abertos,
vós, para
quem não existe batalha perdida,
nem
desmedida amargura,
nem aridez
nos desertos;
vós, que
modificais um leito dum rio;
- nos dias
difíceis sem literatura,
penso em
vós: e confio;
penso em mim
e confio;
- para vós
os meus versos, companheiros da vida!
Se canto os
búzios, que falam dos clamores,
das pragas
imensas lançadas ao mar
e da fome
dos pescadores,
- penso em
vós, companheiros,
que trazeis
outros búzios para cantar...
Acuso as
falas e os gestos inúteis;
aponto as
ruas tristes da cidade
a crivo de
bocejos as meninas fúteis...
Mas penso em
vós e creio em vós, irmãos,
que trazeis
ruas com outra claridade
e outro
calor no apertar das mãos.
E vou
convosco. - Definido e preciso,
erguido ao
alto como um grito de guerra,
à espera do
Dia de Juízo...
Que o Dia do
Juízo
não é no
céu... é na Terra!
A D. António de Noronha, sobre o
desconcerto do mundo:
Quem há que veja aquele que vivia
de latrocínios, mortes e adultérios,
que ao juízo das gentes merecia
perpétua pena, imensos vitupérios,
se a Fortuna em contrário o leva e guia,
mostrando, enfim, que tudo são mistérios,
em alteza d'estados triunfante
que, por livre que seja, não se espante?
Canto da
cela 10
Este esquife de pedra e de aço em que viajo,
onde navego as horas e as constelações do ódio,
é uma cela imóvel plantada no coração do medo.
Um manto de argamassa e ferro cobre a minha voz.
Não mais a mordaça invisível da falsa liberdade
que ante o Sol floresce impudicamente: agora
a voz abafada por sucessivas grades e paredes,
submersa sob este céu de estuque, sem estrelas;
agora, esta feia gaiola pintada de desespero,
em cujo dorso vai cravada a aranha possessiva
da lâmpada gradeada sempre acesa sobre a porta,
feroz sentinela da noite eterna. E, todavia,
para lá das grades, do corredor, do carcereiro,
a minha face adivinha o hálito fresco da madrugada
e eu navego a madrugada sobre o meu bailique,
sobre este corcel rescendente a suor e a sangue.
Durante as refeições abrem a porta e eu vejo
uma estreita fatia da janela do corredor:
são cinco grades de sé e três de céu
e estes são os melhores momentos do dia.
De pé, como a sopa do estado e olho a catedral –
– tive sorte – fiquei em frente a uma bela rosácea
(o quotidiano de um preso constrói-se
de factos humildes e pequenos).
Na parede cinzenta tatuaram um camelo sem pernas,
Um perfil de mulher com longos cabelos,
Uma estrela, nomes e riscos, muitos riscos,
sulcos no tempo, dias rasgados a golpes de solidão
pelos muitos camaradas que já aqui estiveram
e deixaram a sua passagem impressa nas paredes,
no chão, nas mantas e no ar, neste odor,
escandindo angústia e dolorosa expectativa.
Já não olho a parede – conheço-a de cor –
gasto as horas passeando nestas estreitas tábuas,
quatro metros para lá, quatro metros para cá.
Lá fora
passam elétricos e os pombos rufam as asas.
………………………………………………………
À noite a prisão é um corpo pétreo, mas que pulsa,
As suas velhas empenas vibram sob os nossos dedos,
levam e trazem palavras fraternas.
Com o amor com que Ísis juntou o corpo de Osíris
disperso ao vento, junto letra a letra
uma mensagem que palpita aos meus ouvidos
– coragem companheiro – coragem companheiro.
Ah Companheiros,
nem a pedra e o aço conseguem esmagar as nossas vozes,
elas virão um dia como um rio impetuoso e forte
rasgar a noite em que as querem aprisionar,
destruir as grades da tirania, a opressão
e a crueldade – tudo isto derrubarão
na corrida para o seu oceano – a Liberdade.
Em Janeiro
de 1965, envolvido na grande vaga de prisões que afectou estudantes e
intelectuais das duas organizações clandestinas existentes – o Partido
Comunista e a Frente de Acção Popular – fui preso e, antes de ir para a sede da
polícia política onde, durante muitos dias, fui interrogado da forma que se
sabe ou imagina, estive uns dias encarcerado na cela nº 10 do Aljube, num
daqueles desumanos cárceres a que se chamava os «curros», celas estreitas e
insalubres onde a luz filtrada através das grades e atravessando o corredor,
era a única coisa agradável que acontecia. Quando, três meses depois, fui
libertado, a recordação daqueles dias num «curro» do Aljube (que nem foram os
piores…), ditou-me este texto que depois publiquei em A Voz e o Sangue. De
notar, e não me canso de insistir neste tópico, que a Liberdade que invoco não
é esta que vivemos – muito feita de «liberdades» – mas sim aquela que, há mais
de 40 anos, eu e muitos sonhávamos alcançar.
Dolores Ibárruri, La Pasionaria
“Não Passarão”, é a famosa frase
atribuída a Dolores Ibarruri, mais
conhecida por La Pasionaria,
“NÃO PASSARÃO”
Não
desesperes, Mãe !
O
último triunfo é interdito
Aos
heróis que o não são.
Lembra-te
do teu grito:
Não passarão !
Não
passarão !
Só
mesmo se parasse o coração
Que
te bate no peito.
Só
mesmo se pudesse haver sentido
Entre
o sangue vertido
E
o sonho desfeito.
Só
mesmo se a raiz bebesse em lodo
De
traição e de crime.
Só
mesmo se não fosse o mundo todo
Que
na sua tragédia se redime.
Não
passarão !
Arde
a seara, mas dum simples grão
Nasce
o trigal de novo.
Morrem
filhos e filhas da nação,
Não
morre um povo !
Não
passarão !
Seja
qual for a fúria da agressão,
As
forças que te querem jugular
Não
poderão passar
Sobre
a dor infinita desse não
Que
a terra inteira ouviu
E
repetiu:
Não passarão !
MIGUEL TORGA
Poemas Ibéricos, Coimbra, 3ªed., 1985,
pp. 74-5)
Este É o Tempo
Este é o tempo
Da selva mais obscura
Até o ar azul se tornou grades
E a luz do sol se tornou impura
Esta é a noite
Densa de chacais
Pesada de amargura
Este é o tempo em que os homens renunciam.
Sophia de Mello Breyner Andresen
RENDIÇÃO
Vem, camarada, vem
Render-me neste sonho de beleza!
Vem olhar doutro modo a natureza
E cantá-la também!
Ergue o teu coração como ninguém;
Fala doutro luar, doutra pureza;
Tens outra humanidade, outra certeza:
Leva a chama da vida mais além!
Até onde podia, caminhei.
Vi a lama da terra que pisei
E cobri-a de versos e de espanto.
Mas, se o facho é maior na tua mão,
Vem, camarada irmão,
Erguer sobre os meus versos o teu canto.
E no mesmo livro (Libertação) o poema «Provérbio» reforça e completa «Rendição»:
O que vier com alma nova, fique.
Deite a raiz,
Cresça, floresça, frutifique,
E morra se outra seiva o contradiz.
(Torga, 1978: 82)