segunda-feira, 1 de outubro de 2012

CARTA A MEUS FILHOS - Jorge de Sena



CARTA A MEUS FILHOS (aqui)

Sobre os fuzilamentos de Goya
 
Não sei, meus filhos, que mundo será o vosso.
É
possível, porque tudo é possível, que ele seja
aquele que eu desejo para vós. Um simples mundo,
onde tudo tenha apenas a dificuldade que advém
de
nada haver que não seja simples e natural.
Um mundo em que tudo seja permitido,
conforme o vosso gosto, o vosso anseio, o vosso prazer,
o
vosso respeito pelos outros, o respeito dos outros por vós.
E é
possível que não seja isto, nem seja sequer isto
o
que vos interesse para viver. Tudo é possível,
ainda quando lutemos, como devemos lutar,
por quanto nos pareça a liberdade e a justiça,
ou mais que qualquer delas uma fiel
dedicação à honra de estar vivo.
Um dia sabereis que mais que a humanidade
não tem conta o número dos que pensaram assim,
amaram o
seu semelhante no que ele tinha de único,
de
insólito, de livre, de diferente,
e foram sacrificados, torturados, espancados,
e
entregues hipocritamente â secular justiça,
para que os liquidasse «com suma piedade e sem efusão de sangue
Por serem fiéis a um deus, a um pensamento,
a uma
pátria, uma esperança, ou muito apenas
à
fome irrespondível que lhes roía as entranhas,
foram estripados, esfolados, queimados, gaseados,
e os
seus corpos amontoados tão anonimamente quanto haviam vivido,
ou suas cinzas dispersas para que delas não restasse memória.
Às
vezes, por serem de uma raça, outras
por serem de uma classe, expiaram todos os erros
que não tinham cometido ou não tinham consciência
de
haver cometido. Mas também aconteceu
e acontece
que não foram mortos.
Houve
sempre infinitas maneiras de prevalecer,
aniquilando
mansamente, delicadamente,
por ínvios caminhos quais se diz que são ínvios os de Deus.
Estes fuzilamentos, este heroísmo, este horror,
foi uma
coisa, entre mil, acontecida em Espanha
mais de um século e que por violenta e injusta
ofendeu o
coração de um pintor chamado Goya,
que tinha um coração muito grande, cheio de fúria
e de
amor. Mas isto nada é, meus filhos.
Apenas um episódio, um episódio breve,
nesta
cadeia de que sois um elo (ou não sereis)
de
ferro e de suor e sangue e algum sémen
a
caminho do mundo que vos sonho.
Acreditai
que nenhum mundo, que nada nem ninguém
vale mais que uma vida ou a alegria de tê-la.
É
isto o que mais importa - essa alegria.
Acreditai
que a dignidade em que hão-de falar-vos tanto
não é senão essa alegria que vem
de estar-se
vivo e sabendo que nenhuma vez alguém
está
menos vivo ou sofre ou morre
para que um de vós resista um pouco mais
à
morte que é de todos e virá.
Que tudo isto sabereis serenamente,
sem culpas a ninguém, sem terror, sem ambição,
e
sobretudo sem desapego ou indiferença,
ardentemente espero. Tanto sangue,
tanta dor, tanta angústia, um dia
-
mesmo que o tédio de um mundo feliz vos persiga -
não hão-de ser em vão. Confesso que
muitas
vezes, pensando no horror de tantos séculos
de
opressão e crueldade, hesito por momentos
e uma amargura
me submerge inconsolável.
Serão ou não em vão? Mas, mesmo que o não sejam,
quem ressuscita esses milhões, quem restitui
não a vida, mas tudo o que lhes foi tirado?
Nenhum Juízo Final, meus filhos, pode dar-lhes
aquele instante que não viveram, aquele objecto
que não fruíram, aquele gesto
de
amor, que fariam «amanhã».
E,
por isso, o mesmo mundo que criemos
nos cumpre tê-lo com cuidado, como coisa
que não é nossa, que nos é cedida
para a guardarmos respeitosamente
em memória do sangue que nos corre nas veias,
da
nossa carne que foi outra, do amor que
outros não amaram porque lho roubaram.


Jorge de Sena
- Antologia Poética . Ed. ASA - 1999

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