UM CANTO
Canto o pranto do homem que não vejo
canto o desejo recôndito dos humildes
canto a bravura dos que madrugam e
passam fome,
eu canto o homem,
do dia-a-dia, da noite, da esperança,
canto a vingança sem ódio e
a fartura sonhada na boca da criança.
Canto o pó do esqueleto anónimo e
dos famintos,
canto o amuleto, a figa, a tábua salvadora
da loteria,
canto a heresia dos irmãos tinhosos
e a rebeldia dos
inconformados.
Canto os do lado, os fora do trilho, os deserdados
da história que o tempo não perdoa.
Canto aquele irmão da academia da rua,
canto o adulto, o arauto, Gentileza
e o indulto da pena já cumprida,
canto o homem da lida
e vómito do sistema, dos
atónitos
que apodrecem
na cadeira panorâmica
e mordem a gengiva engelhada
das línguas obscenas
dos que dominam a ogiva.
Canto os reclusos
involuntários
a mudança de rumo,
o desequilibrar o prumo,
canto o acaso que prende o bandido do judiciário
que vendeu a alma e o código ao bicheiro,
canto o idílio da fome e do dinheiro,
que um sonha e outro sacraliza,
canto o fardo, a fila das madrugadas,
o gado sem gula, sem guia, sem guizo.
Canto a tristeza do canto do passado
e o presente sem futuro não gozado
dos que constroem seus muros sobre o lodo,
canto os urros dos que comem o lixo dos monturos
da civilização desigual,
o engodo do sinal que a venda não vislumbra,
canto o caos, a sombra moribunda,
a fúria que rasga o primeiro raio,
e espatifa a cabeça do lacaio,
canto a certeza de que canto não é só canto,
é a leveza que explode o germinar de tudo.
Vicente Cariri
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