quarta-feira, 6 de novembro de 2013

Manuel Gusmão - UMA CHAMA NÃO SE PRENDE

UMA CHAMA NÃO SE PRENDE 

rodeado de paredes
rodeadas de
muros altos
que foram depois muralhas
um preso encarcerado
ao
longo da terrível década de 50
inteira
Não cedeu.

Levado a tribunal
em 3 e 10 de Maio de 1950
então fica a saber que Militão e Sofia
presos com ele torturados não «falaram»
não cederam E que esse grande patriota Militão
Ribeiro fazendo greve da fome foi morto
Perante o tribunal acusa os seus acusadores
Defende o
seu Partido a sua acção
e a
sua orientação política

Ponto a ponto responde às calúnias
que são os porcos argumentos do ódio
e do
terror de estado Ponto a ponto
responde
com o orgulho do homem livre
e o
vigor da inteligência Responde por si
e
pelos seus como quem acusa
e
ameaça Ameaça o inimigo que o tem preso
Dos 11
anos seguidos, preso,
14 meses
incomunicável,
8
anos em isolamento
E
não cedeu Nunca cedeu
Agora na humidade salina da cela
contra o eco do estrondo do mar
que não esquece/e grita/contra a fortaleza
contra a corrente contínua dos dias e das noites
este homem livre é uma chama
uma lâmpara
marina

Não cede e desenha
e
estuda e escreve este homem livre
que está preso e é uma chama
açoitada
pelo vento e pelo silêncio
numa
cela
Não cede e escreve
A
Questão Agrária
As
lutas de classes em Portugal nos fins da Idade Média
e escreve uma
tradução do Rei Lear
e escreve
Até Amanhã, camaradas

o homem livre encarcerado
fugiu
enfim
colectivamente
a 3 de
Janeiro de 1960
e
nunca mais foi apanhado

Manuel Gusmão
(de «Três Curtos Discursos em Homenagem Póstuma a Álvaro Cunhal”)

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