sábado, 29 de novembro de 2014

OPERÁRIO - Campos Lima




OPERÁRIO

Ah não, virá um dia em que um sopro fecundo
Ainda há-de mudar toda a face do mundo:
O dia em que se ouvir vibrante aquela voz
Que a vida anda a gritar há muito dentro em nós.
Campos Lima

sexta-feira, 28 de novembro de 2014

CANTO DO CEIFEIRO - Eduardo Valente da Fonseca

CANTO DO CEIFEIRO

Canta ceifeiro canta,
sob o sol de Agosto, canta,
a terra é tão farta e tanta,
que chega para a tua fome
e cresce para a tua manta,

Canta ceifeiro canta
a charneca e não soçobres.
Espanta o medo e o cansaço,
aguenta mais um pedaço
e canta ceifeiro canta
o heroísmo dos pobres.

Canta ceifeiro canta
o Alentejo todo teu,
canta a charneca em flor,
canta o trigo com suor,
canta a lonjura do céu.
Canta ceifeiro canta
em Serpa. Cuba ou Ermidas,
ia que os braços são pequenos
dêem-se as vozes ao menos
que as vozes serão ouvidas.

Canta ceifeiro canta
canta sempre sem espanto
tudo quanto tanto anseias,
que não vem longe o minuto
do teu suor ser enxuto
e tu seres a própria Paz.
Canta ceifeiro canta
e diz de quanto és capaz,

Canta esses sulcos vermelhos
como as tuas maiores veias,
canta a luta e a tua sede
os azinheiros e o trigo,
canta a carne e o desabrigo
por todo o frio do inverno,
canta a morte dos teus filhos
mais a dos teus companheiros,
canta sempre canta, canta
belas canções de ceifeiro,
que o Alentejo cresceu.
dos teus braços de sobreiro
erguidos ao sol de estio,
e de todo o teu suor
Já do tamanho dum rio.

Canta ceifeiro canta
o Alentejo todo teu,
que nele foi que nasceste
com raízes desde o fundo,
e nele os irmãos da terra
vem sendo há muito ofendidos
nos seus sempre sagrados
e humanos cinco sentidos.

Canta ceifeiro canta
canta com ânsia e bravura
e que o canto que se levante
dê mais força á tua altura.

Eduardo Valente da Fonseca
in A CIDADE E OS HOMENS E OUTROS POEMAS,


quinta-feira, 27 de novembro de 2014

Nunca vi um alentejano a cantar sozinho


Nunca vi um alentejano a cantar sozinho
 
Nunca vi um alentejano a cantar sozinho
com egoísmo de fonte.
Quando sente voos na garganta,
desce ao caminho
da solidão do seu monte,
e canta
em coro com a família do vizinho.

Não me parece pois necessária
 outra razão
-ou desejo
de arrancar o sol do chão-
para explicar
a reforma agrária
do Alentejo.

É apenas uma certa maneira de cantar.

José Gomes Ferreira

O cante alentejano já é da Humanidade. A decisão foi tomada esta quinta-feira, em Paris, pela Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (UNESCO)

quarta-feira, 26 de novembro de 2014

Destinatário desconhecido – Hans Magnus Enzensberger

Destinatário desconhecido –
Retour à l’expéditeur

Muito obrigado pelas nuvens
Muito obrigado pelo bem temperado cravo
e, porque não, pelas quentes botas de Inverno.
Muito obrigado pelo meu insólito cérebro
e pelos muitos outros órgãos ocultos,
pelo ar e, naturalmente, pelo Bordeaux.
Muitíssimo obrigado para que não me acabe o lume no isqueiro,
e a curiosidade e o pesar, o insistente pesar.
Muito obrigado pelas quatro estações,
pelo número e e pela cafeína,
e naturalmente pelos morangos no prato,
pintados por Chardin, tal como pelo sono,
pelo sono muito em especial,
e, para não esquecer,
pelo princípio e pelo fim,
e os poucos minutos pelo meio
em insistente agradecimento,
por mim também pelas toupeiras lá fora no jardim.

Hans Magnus Enzensberger
Empfänger unbekannt –
Retour à l’expéditeur

Vielen Dank für die Wolken.
Vielen Dank für das Wohltemperierte Klavier
und, warum nicht, für die warmen Winterstiefel.
Vielen Dank für mein sonderbares Gehirn
und für allerhand andre verborgen Organe,
für die Luft, und natürlich für den Bordeaux.
Herzlichen Dank dafür, dass mir das Feuerzeug nicht ausgeht,
und die Begierde, und das Bedauern, das inständige Bedauern.
Vielen Dank für die vier Jahreszeiten,
für die Zahl e und für das Koffein,
und natürlich für die Erdbeeren auf dem Teller,
gemalt von Chardin, sowie für den Schlaf,
für den Schlaf ganz besonders,
und, damit ich es nicht vergesse,
für den Anfang und das Ende
und die paar Minuten dazwischen
inständigen Dank,
meinetwegen für die W¨hlmäuse draussem im Garten auch.

[“Empfänger unbekannt – Retour à l’expéditeur” chama a atenção para o valor da vida na sua modéstia, no seu dia a dia e nos pequenos desafios e alegrias – apesar de tudo.  - Peter Hanenberg]

segunda-feira, 24 de novembro de 2014

Definição - Affonso Romano de Sant'Anna


Definição

Um corpo não é um fruto,
embora em tudo se assemelhem:
densa forma, oculto gosto, cinco letras
e um pressuposto poder de vida.

Um corpo é mais que um fruto
que se plante, que se colha, ou se degluta:
um corpo é um corpo,
é um corpo,
é uma luta.

Um corpo não é um potro,
embora assim se manifeste:
pêlos mansos, membros ágeis, sal na boca,
e um desejo verde pelos campos.

Um corpo é mais que um potro
que pelos prados e currais se dome:
um corpo é um corpo,
é um corpo
é fome.

Nem chama que se anule,
nem espada em duplo gume
ou máquina de estrume.

Um corpo é mais que tudo:
mais que a chave,
mais que a fome,
mais que o leme,
mais que o açude.

Um corpo
é mais que tudo:
é a própria imagem
que eu não pude.

O corpo é onde
é carne:

o corpo é onde
há carne
e o sangue
é alarme.

O corpo é onde
é chama:

o corpo é onde
há chama
e a brasa
inflama.

O corpo é onde
é luta:

o corpo é onde
há luta
e o sangue
exulta.

O corpo é onde
é cal:

o corpo é onde
há cal
e a dor
é sal.

O corpo
é onde
e a vida
é quando.
  

Affonso Romano de Sant'Anna