Segundo canto
para a renovação do Natal
A Noémia de Sousa
Tudo foi
emprestado e alheio
Para que Deus
nascesse conforme as Escrituras:
A gruta, que
os presépios embelezam,
- Ou talvez
um estábulo?
- Ou talvez
o ventre autêntico
da mãe?
A burra e a vaca,
José, que era
o pai cómodo,
E a mãe, que
era o empréstimo
supremo,
O recurso, a verdade
E a necessidade
Para que Deus
nascesse entre os homens,
Mais do que Deus,
Um Homem.
Havia os magos com
presentes deslocados,
O astro dos sinais,
A voz, o anjo,
os pastores e a frase
Que nos presépios
fabricados
Fala da paz, dos homens
e da boa-vontade.
Havia a noite e nós,
Filhos de pai e mãe,
Nascidos antes e depois à espera de que Deus
viesse,
Fruto d'A que não teve marido neste mundo
Para que o filho
deslisasse sem pecado.
E havia Herodes,
Para que não fosse fácil
O que era
inevitável.
E houvesse drama.
Ora bem.
Entre a burra e a vaca,
Dentro do hálito tépido das bestas,
Sobre as palhas
E ao nível das tetas,
O menino jazia
Nascido,
Que é como quem diz
cumprido
Da promessa que
havia.
José,
Os magos e os pastores
Tinham a sua fé;
A estrela tinha
o seu ofício
de ser estrela;
A noite e as bestas
tinham a sua inconsciência,
Que é tudo,
Porque tudo e nada são a mesma coisa;
O Menino tinha
o mistério de ser menino
E já Deus;
Ela, Ela tinha a miséria de ser mãe
E só mãe.
Ela é o Natal.
Ora bem.
Não falemos de
Herodes, nem dos magos,
nem dos pastores,
Nem sequer de José,
Do amável, do amoroso
José
Que nos enternece
E discreto desaparece
Pela esquerda baixa
Do primeiro quadro
da tragédia
De que somos o coro
- E também a tragédia.
Mas falemos d'Ele,
Que Ele é Ele,
Mesmo quando se faz pequenino
Para ter o nosso tamanho.
Não falemos da noite,
Que é um pouco mais que tudo isso,
- E menos do que
a mãe,
De quem falemos.
Ora bem.
Ela ali estava para ser pintada.
Para ser pintada na vista do conjunto
Que é o Natal,
Comparsa dos presépios que
hão-de vir,
Entre arraiais e foguetes
E estrelas de papel.
Ela ali estava para ser pintada
Na fuga para
o Egipto,
Ao trote gracioso
do burrito,
Sem vaca, só com José e o deserto
e as escrituras,
Que mandam mais que
Herodes
E todos os seus
bigodes.
Ela ali estava para ser pintada.
Para ser pintada - pouco e bem -
Sem o burrito, só com Sant'Ana e S. José
No breve engano
de ser só mãe
Dum filho que
fosse só filho.
Ela ali estava para ser pintada
No alarme de Jesus entre
os doutores.
Ela ali estava p'ra não
ser pintada
Depois que Jesus fez trinta,
Antes dos trinta
e três
(Disseram trinta doutores:
- Diga trinta e três.
Ele disse.
Ele disse e
morreu
Sem sofrer dos pulmões).
Ela ali estava para ser pintada
E no zénite de Jesus ser Jesus,
Depois dos trinta,
Quando Jesus
Fez
Trinta e três,
Ela ressuscitou
pintura ao pé
da cruz.
Ora bem.
A cruz que
Ele trazia,
Mal lhe pesava.
Ele esperava.
Ele salvava.
Ele descia
E por isso
subia.
Ela era mulher, era mãe - e
Sabia.
A sua cruz
Era Jesus.
O seu inferno
Era ser mãe do Eterno
Que havia de sangrar
E morrer
Pelo caminho.
Por isso é que Ela mal se vê no palheiro,
Que é como quem diz,
no estábulo.
Não é a estrela que A
deslustra
(O Universo e todos
os seus astros
Não valem o que Ela é);
Não são os magos que A repelem
Para o canto, de não ser rainha,
Porque Ela o é dos reinos
que eles
buscavam;
Não é José que A excede, porque
José é José,
E isso lhe
basta sem
ser bastante;
Não é o Filho que A tolda,
Porque Ela é a Mãe.
Ora bem.
É ser a Mãe.
É ver que
o Seu menino
Não é apenas menino,
Mas a dose anunciada
De Homem e Deus;
A ponte que
tem de ser pisada
Para que haja estrada
Para os céus;
É o ser-lhe filho e ser-lhe pai,
O filho que
Ela estremece
Vivo e já morto,
Porque o Pai quer e Ela obedece.
Irmãos em Cristo!
Irmãos do mesmo pai,
Quem quer que seja o
Cristo
Que buscais.
Esta é a Sua hora!
A Sua - e a nossa.
Ela é o Natal.
Ave-Maria.
Ora bem.
1 comentário:
Haja luz
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