“À irmã partindo-se para
o hospital da CUF”:
Não é nada com o meu corpo, a dança é tua,
mas é meu o desespero
de te ver agora
ao balcão
das meninas que mexem na desgraça
com gestos eficientes
de ambulatórias parcas.
Estivemos à hora
de te extorquirem
o sangue
que afinal foi pago
pelo teu bolso.
E as mãos
da auxiliar procuravam-te a veia
que parecia fugida às tuas dores
insuportáveis.
As luzes
de um branco
muito sujo
davam claridade
ao útero
maior das enfermarias,
onde pareciam nadar, placentários,
os que
voltam à terra pela
segunda vez.
Mas tu não vais de barco,
nem de borco, entras pelo teu pé,
atravessas
o rio do teu destino
como se ele fosse o bar
e demoras
o olhar na televisão
que grita entre cancros, pestes,
a força
de viver.
A ciência
sabe esta verdade.
Caminha irmã, só, com os teus pertences
para junto de
gente nunca vista
e que
vai partilhar contigo
o íntimo
do corpo
e da doença.
Amanhã vais dormir e depois se
verá.
se acordas, deve ser,
exausta,
a tactear o soro,
o dorso do cirurgião
tinto de sangue
e na boca
isenta de formigas
a sede
que te
redime
novamente criança em
busca da primeira
manhã
que te viu nascer.
Tudo é alma cirúrgica,
e a morte
não te
convida.
E eu
fraco e precocemente
aliviado
virei de madrugada
saber
que tudo correu bem.
Que só esperas ir à casa de banho
e no espelho
do dia olhares
de
novo os teus olhos
claríssimos
ou o fio de vida a correr na urina feliz
e olorosa
como os sais de uma rainha
num palácio
de mármore, de frio,
de luxo e leite,
Soror Dolorosa.
Armando Silva Carvalho
2000, p 432