segunda-feira, 30 de março de 2015

“À irmã partindo-se para o hospital da CUF”: - Armando Silva Carvalho



“À irmã partindo-se para o hospital da CUF”:

Não é nada com o meu corpo, a dança é tua,
mas é meu o desespero de te ver agora
ao balcão das meninas que mexem na desgraça
com gestos eficientes de ambulatórias parcas.
Estivemos à hora de te extorquirem
o sangue
que afinal foi pago pelo teu bolso.
E as mãos da auxiliar procuravam-te a veia
que parecia fugida às tuas dores insuportáveis.
As luzes de um branco muito sujo
davam claridade ao útero
maior das enfermarias,
onde pareciam nadar, placentários,
os que voltam à terra pela segunda vez.
Mas tu não vais de barco,
nem de borco, entras pelo teu pé,
atravessas
o rio do teu destino
como se ele fosse o bar
e demoras o olhar na televisão
que grita entre cancros, pestes,
a força de viver.
A ciência sabe esta verdade.
Caminha irmã, só, com os teus pertences
para junto de
gente nunca vista
e que vai partilhar contigo
o íntimo do corpo
e da doença.
Amanhã vais dormir e depois se verá.
se acordas, deve ser, exausta,
a tactear o soro, o dorso do cirurgião
tinto de sangue
e na boca isenta de formigas
a sede que te redime
novamente criança em busca da primeira manhã
que te viu nascer.
Tudo é alma cirúrgica,
e a morte não te convida.
E eu fraco e precocemente aliviado
virei de madrugada saber
que tudo correu bem.
Que só esperas ir à casa de banho
e no espelho do dia olhares de
novo os teus olhos
claríssimos
ou o fio de vida a correr na urina feliz
e olorosa
como os sais de uma rainha
num palácio de mármore, de frio, de luxo e leite,
Soror Dolorosa.

Armando Silva Carvalho
2000, p 432

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