segunda-feira, 31 de outubro de 2016

Nas Estradas do Nordeste - SOCORRO LIRA


(Nas Estradas do Nordeste aos 42 min, e outras canções)
 

Nas Estradas do Nordeste

Nas estradas do Nordeste
Tanto causo pra contar
Estórias de vida e morte
Contos pra gargalhar
Memória de gente forte
Fraquezas para aguentar
Tristezas que varrem a alma
Saudade até faz chorar

Fazer arte desta lida
É a sorte de inventar
É cantar a morte e a vida
É sorrir e é chorar

Eu vi menino e menino
Sem terço, berço nem lar
Compondo a própria sina
Sem versos para rimar
Eu vi velho sem história
Sem um bem pra consolar
Vi um país sem memória
Sem futuro pra sonhar

Mulheres de garra e fibra
Homens de muita valia
Gente de tanta presteza
Terra de muita alegria
Lugar de tanta esperança
Que não se cansa jamais
De esperar melhores dias
De benção, fartura e paz

A juventude é roseira
Que precisa de carinho
Para crescer por inteira
E pra seguir seu caminho
Amando e querendo bem
A esta terra querida
Lutando pela injustiça
Consciente e destemida
No céu azul do Nordeste
Escrevi o meu poema
Para aquele cabra da peste
O rapaz da cor morena
Do sol vem todo o calor
Que o amor pode tomar
Para não morrer de dor
E os corações esquentar

No céu, na terra, no mar
Em qualquer lugar que seja
Que o visitante chegar
O Nordeste tem beleza
A natureza é tão linda
E ainda teima em viver
Toda presença é bem-vinda
Sendo para o bem trazer

Dignidade é meu nome
Sobrenome é Nordestina
Sou parceira da verdade
Sou assim desde menina
Para mim, pra esta terra
Que quero cumplicidade
Sou inimiga da guerra
E amante da liberdade



domingo, 30 de outubro de 2016

SONS - Luandino Vieira





SONS

A guitarra
é som antepassado

Partiram-se as cordas
esticadas pela vida.

Chorei fado.

Que importa hoje
se o recuso:

o ngoma* é o som adivinhado.


Luandino Vieira

sábado, 29 de outubro de 2016

A Marmita - Lêdo Ivo




A Marmita

Em sua marmita
não leva o operário
qualquer metafísica.
Leva peixe frito,
arroz e feijão.
Dentro dela tudo
tem lugar marcado.
Tudo é limitado
e nada é infinito.
A caneca d'água
tem espaço apenas
para a sua sede.
E a marmita é igual
à boca do estômago,
feita sob medida
para a sua fome.
E quando termina
sua refeição,
ele ainda cata
todas as migalhas,
todo esse farelo
de um pão que suasse
durante o trabalho.
Tudo quanto ganha
o operário aplica
como um capital
em sua marmita.
E o que ele não ganha
embora trabalhe
é outro capital
que também investe:
palavra que diz
em seu sindicato,
frase que se escreve
no muro da fábrica,
visão do futuro
que nasce em seus olhos
que só com fumaça
se enchem de lágrimas.
Em sua marmita
não leva o operário
o caviar de
qualquer metafísica.
E sendo ele o mais
exato dos homens
tudo nele é físico
e material,
tem seu nome e forma,
seu peso e volume,
pode-se pegar.
Seu amor tem saia
pêlos e mucosas
e, fecundo, faz
novos operários.
As coisas se medem
pelo seu tamanho:
sono, mesa, trave.
No trem ou no bonde
nenhum operário
pode se espalhar
sem fazer esforço.
É como no mundo:
— tem que empurrar.
Vasilhame cheio
de matéria justa,
sua vida é exata
como uma marmita.
Nela cabe apenas
toda a sua vida.
E não cabe a morte
que esta não existe,
não sendo manual,
não sendo uma peça
de recauchutar.
(Artigo infinito,
sem ferro e sem aço,
qualquer um a embrulha
sem usar barbante
ou papel almaço.)
Fabril e imanente
o operário vive
do que sabe e faz
e, sendo vivente,
respira o que vê.
O tempo que o suja
de óleo e fuligem
é o mesmo que o lava,
tempo feito de água
aberta na tarde
e não de relógio.
E a própria marmita
também é lavada.
E quando ele a leva
de volta pra casa
ela, metal, cheira
menos a comida
do que a operário.



sexta-feira, 28 de outubro de 2016

ARTE POÉTICA - Mário Dionísio

(O músico, pintura de Mário Dionísio, 1948)


ARTE POÉTICA

A poesia não está nas olheiras imorais de Ofélia
nem no jardim dos lilases.
A poesia está na vida,
nas artérias imensas cheias de gente em todos os sentidos,
nos ascensores constantes,
na bicha de automóveis rápidos de todos os feitios e de todas as cores,
nas máquinas da fábrica e nos operários da fábrica
e no fumo da fábrica.
A poesia está no grito do rapaz apregoando jornais,
no vaivém de milhões de pessoas conversando ou prague­jando ou rindo.
Está no riso da loira da tabacaria,
vendendo um maço de tabaco e uma caixa de fósforos.
Está nos pulmões de aço cortando o espaço e o mar.
A poesia está na doca,
nos braços negros dos carregadores de carvão,
no beijo que se trocou no minuto entre o trabalho e o jantar
— e só durou esse minuto.
A poesia está em tudo quanto vive, em todo o movimento,
nas rodas do comboio a caminho, a caminho, a caminho
de terras sempre mais longe,
nas mãos sem luvas que se estendem para seios sem véus,
na angústia da vida.
A poesia está na luta dos homens,
está nos olhos abertos para amanhã.