Circula na Internet o
fac-simile deste poema publicado no “Jornal do Brasil” (Rio de Janeiro) no
domingo, 6 de janeiro de 1980. E porque tenho especial admiração pelo autor
facilito-vos a leitura do poema que se mantém actual.
QUE PAÍS É ESTE?
1
Uma coisa é um país,
outra um ajuntamento.
Uma coisa é um país,
outra um regimento.
Uma coisa é um país,
outra o confinamento.
Uma coisa é um país,
outra um ajuntamento.
Uma coisa é um país,
outra um regimento.
Uma coisa é um país,
outra o confinamento.
Mas já soube datas, guerras, estátuas
usei caderno Avante
usei caderno Avante
— e desfilei
de tênis para o ditador.
Vinha de um "berço esplêndido" para um "futuro radioso"
e éramos maiores em tudo
Vinha de um "berço esplêndido" para um "futuro radioso"
e éramos maiores em tudo
— discursando
rios e pretensão.
Uma coisa é um país,
outra um fingimento.
Uma coisa é um país,
outra um monumento.
Uma coisa é um país,
outra o aviltamento.
Deveria derribar aflitos mapas sobre a praça
em busca da especiosa raiz? Ou deveria
Uma coisa é um país,
outra um fingimento.
Uma coisa é um país,
outra um monumento.
Uma coisa é um país,
outra o aviltamento.
Deveria derribar aflitos mapas sobre a praça
em busca da especiosa raiz? Ou deveria
parar de ler jornais
e
ler a anais
como anal
animal
hiena patética
na
fossa nacional?
Ou deveria, enfim, jejuar na Torre do Tombo
Ou deveria, enfim, jejuar na Torre do Tombo
comendo o que as traças descomem
procurando
o Quinto Império, o primeiro portulano,
a viciosa visão do paraíso que nos impeliu a errar
aqui?
Subo, de joelhos, as escadas dos arquivos nacionais,
como qualquer santo barroco
a rebuscar
no mofo dos
papiros, no bolor
das pias
batismais, no bodum das vestes reais
a ver o que se
salvou com o tempo
e ao mesmo tempo
-- nos trai.
2
Há 500 anos caçamos índios e operários,
Há 500 anos queimamos árvores e hereges,
Há 500 anos estupramos livros e mulheres,
Há 500 anos sugamos negras e aluguéis.
Há 500 anos dizemos:
que o
futuro a Deus pertence,
que Deus
nasceu na Bahia,
que São
Jorge é que é guerreiro,
que do
amanhã ninguém sabe,
que
connosco ninguém pode,
que quem
não pode sacode.
Há 500 anos somos pretos de alma branca,
não somos
nada violentos,
quem
espera sempre alcança
e quem
não chora não mama
ou quem
tem padrinho vivo
não morre
nunca pagão.
Há 500 anos propalamos:
este é o
país do futuro,
antes
tarde do que nunca,
mais vale
quem Deus ajuda
e a Europa
ainda se curva.
Há 500 anos
somos
raposas verdes
colhendo
uvas com os olhos,
semeamos
promessas e vento
com
tempestades na boca,
sonhamos
a paz na Suécia
com
suíças militares,
vendemos
siris na estrada
e
papagaios em Haia,
senzalamos casas grandes
e
sobradamos mocambos,
bebemos
cachaça e brahma
Joaquim
Silvério e derrama,
a
polícia nos dispersa
e o
futebol nos conclama,
cantamos
salve-rainhas
e
salve-se quem puder,
pois
Jesus Cristo nos mata
num
carnaval de mulatas.
Este é um país de síndicos em geral,
este é um país de cínicos em geral,
este é um país de civis e generais.
Este é o país do descontínuo
onde nada congemina,
e somos índios perdidos
na eletrônica oficina
Nada nada congemina:
a mão leve
do político
com nossa
dura rotina,
o salário
que nos come
e nossa
sede canina,
a
esperança que emparedam
e a nossa
fé em ruina,
nada nada
congemina:
a placidez
desses santos
a nossa
dor peregrina,
e nesse
mundo às avessas
a cor da
noite é obsclara
e a
claridez vespertina.
3
Sei que há
outras pátrias. Mas
mato o touro
nesta Espanha,
planto o
lodo neste Nilo,
caço o
almoço nesta Zâmbia,
me batizo
neste Ganges,
vivo eterno
em meu Nepal.
Esta é a rua em que brinquei,
a bola de meia que chutei,
a cabra-cega que encontrei,
o passa-anel que repassei,
a carniça que pulei.
Este é o país que pude
que me deram
e ao que me dei,
e é possível, que por ele, imerecido.
-- ainda me morrerei.
4
Minha geração se fez de terços e
rosários:
-- um terço se exilou
-- um terço se fuzilou
--um terço desesperou
e nessa
missa enganosa
-- houve
sangue e desamor. Por isto,
canto-o-chão
mais áspero e cato-me
ao nível da emoção.
Caí de
quatro
animal
sem
compaixão.
Uma coisa é
um país,
outra uma
cicatriz.
Uma coisa
é um país,
outra a
abatida cerviz,
Uma coisa
é um país,
outra esses
duros perfis.
Deveria eu
calar os que sobraram,
os que se
arrependeram,
os que
sobreviveram em suas tocas
e num
seminário de arredios ratos
suplicar:
-- expliquem-me a mim
e ao meu país?
Vivo no
século vinte, sigo para o vinte um
ainda preso
ao dezanove
como um
tonto guarani
e aldeado vacum. Sei que daqui
a pouco
não haverá
mais país.
País:
loucura de quantos generais a cavalo
escalpelando índios nos murais,
queimando caravelas e livros
--
nas fogueiras e cais,
homens gordos melosos sorrisos comensais
politicando subúrbios e arando votos
e benesses nos palanques oficiais.
Leio, releio
os exegetas.
Quanto mais
leio, descreio, Insisto?
Deve ser um
mal do século
-- se não
for um mal da vista.
Já pensei:
-- é erro meu. Não nasci no tempo certo.
Em vez de
um poeta crente
sou um profeta
ateu
em vez de epopeia
nobre,
os do meu
tempo me legam
como tema
-- a farsa
e o amargo
riso plebeu.
5
Mas
sigo o meu trilho. Falo o que sinto e sinto muito o que falo
-- pois morro sempre que calo.
Minha
geração se fez de lições mal-aprendidas.
-- e classes despreparadas.
Olhávamos
ávidos o calendário. Eramos jovens.
Tínhamos
a “história” ao nosso lado. Muitos
maduravam
um rubro outubro
outros iam ardendo um torpe agosto.
Mas nem
sempre ao verde abril
se segue a flor de maio.
Às
vezes se segue o fosso
-- e o roer do magro osso.
E o que
era revolução outrora
agora passa à convulsão inglória.
E
enquanto ardíamos a derrota como escória
e os
vencedores nos palácios espocavam suas champagnes sobre a aurora
o
reprovado aluno aprendia
com quantos paus se faz a derrisória estória
Convertidos
em alvo e presa da real caçada
abriu-se
embandeirado
um festival de caça aos pombos
-- enquanto
sangrava sanguínea a fresca madrugada.
Os mais
afoitos e desesperados
em vez
de regressarem como eu
sobre
os covardes passos,
e em
vez de abrirem suas tendas para a fome dos desertos
seguiram
no horizonte uma miragem
e logo da luta
passaram
ao luto.
Vi-os lubrificando
suas armas
e os vi tombando
pelas ruas e grutas.
Vi-os
arrebatando louros e mulheres
e serem sepultados às
ocultas
Vi-os pisando o palco da tropical tragédia
e por mais que lhes
advertisse do inevitável final
não pude lhes
poupar o sangue e o ritual.
Hoje
os que
sobraram vivem em escuras
e europeias
alamedas, em subterrâneos
de saudade,
aspirando um chão-de-estrelas
plangendo um
violão com seu violado desejo
a colher
flores em suecos cemitérios
Talvez
todo país
seja apenas um ajuntamento
e o
consequente aviltamento
-- e uma
insolvente cicatriz.
Mas este é
o que me deram,
e este é o
que eu lamento,
e é neste
que espero
-- livrar-me do meu tormento.
Meu problema, parece, é mesmo de
princípio:
-- do prazer e da
realidade
-- que eu pensava
com o
tempo resolver
-- mas só agora com a idade.
Há quem
se ajuste
engolindo
seu fel com mel.
Eu
escrevo o desajuste
vomitando
no papel.
6
Mas este é um povo
bom
me pedem que repita
como um monge cenobita
enquanto me dão porrada
e me vigiam a
escrita.
Sim.
Este é um povo bom. Mas isto também diziam os faraós
enquanto
amassavam o barro da carne escrava.
Isso
digo toda noite
enquanto
me assaltam a casa,
isso
digo
aos
montes em desalento
enquanto
recolho meu sermão ao vento.
Povo.
Como cicatrizar nas faces sua imagem per/versa e una?
Desconfio
muito do povo. O povo com razão,
--
desconfia muito de mim.
Estivemos
juntos na praça, na trapaça e na desgraça,
mas ele
não me entende
-- nem
eu posso convertê-lo.
A menos
que suba estádios, antenas, montanhas
e com
três mentiras eternas
o seduza
para além da ordem moral.
Quando
cruzamos pelas ruas
não
vejo nenhum carinho ou especial predileção nos seus olhos.
Há
antes incomoda suspeita. Agarro documentos, embrulhos, família
a
prevenir mal-entendidos sangrentos.
Daí, já
vejo as manchetes;
--
o poeta que matou o povo
--
o povo que so/çobrou ao poeta
--
(ou o poeta apesar do povo?)
-- Eles
não vão te perdoar
-- me
adverte o exegeta.
Mas
como um país não é a soma de rios, leis,
nomes
de ruas, questionários e geladeiras,
e a
cidade do interior não e apenas gás néon, quermesse e fonte luminosa,
uma
mulher também não é só capa de revista, bundas e peitos
fingindo
que é coisa nossa.
Povo
também são
falsários
e não apenas os operários,
povo
também são
os sifilíticos
não só atletas e
políticos.
povo
são as
bichas, putas e artistas
e não só escoteiros
e heróis de falsas lutas,
povo
são as costureiras e
dondocas
e os carcereiros
e os que estão nos
eitos e docas.
Assim como uma religião não
se faz só de missas na matriz,
mas de mártires e esmolas,
muito sangue e cicatriz,
a escravidão
para resgatar os ferros dos
seus ombros
requer
poetas negros que refaçam
seus palmares e quilombos.
Um país não pode ser só a
soma
de censuras redondas e quilómetros
quadrados de aventura, e o
povo
não é nada novo
-- é um ovo
que ora gera e degenera
que pode ser coisa viva
-- ou ave torta
depende de quem a põe
-- ou quem o gala.
7
Percebo que não sou um poeta brasileiro. Sequer
um poeta mineiro. Não há
fazendas, morros,
casas velhas, barroquismos nos
meus versos.
Embora meu
pai viesse de Ouro Preto com bandas de música polícia militar
/casos de assombração e uma calma
milenar
embora minha
mãe fosse imigrando hortaliças protestantes
tecendo
filhos nas fábricas e amassando a fé e o pão.
olho Minas
com um amor distante,
como se
eu, e não minha mulher
-- fosse um poeta etíope.
Fácil não
era apenas ao tempo das arcádias
entre cupidos
e sanfoninhas,
fácil
também era ao tempo dos partidos – o poeta sabia “história”,
vivia em sua “célula”,
o povo era seu lobby
e profissão,
o povo era seu
cristo e salvação.
O povo, no entanto, não é o cão e o
patrão – o lobo
Ambos são povo.
E o povo sendo ambíguo
é o seu próprio
cão e lobo.
Uma coisa
é o povo, outra a fome.
Se chamais
povo à malta de famintos,
se chamais
povo à marcha regular das armas,
se
chamais povo os urros e silvos no exporte popular
então
mais amo uma manada de búfalos em Marajó
e
diferença já não há
entre
as formigas que devastam minha horta
e as
hordas de gafanhotos de 1948
--
que em carnaval de fome
o próprio
povo celebrou.
Povo
não pode ser sempre o
coletivo de fome.
Povo
não pode ser um séquito sem nome.
Povo
não pode ser o diminutivo de homem.
O povo, aliás,
deve estar cansado desse nome,
embora seu instinto o
leve à agressão
e embora o aumentativo
de fome
possa
ser
revolução.
1 comentário:
Verdadeiramente extraordinário!Um perfil brasileiro com muito saber e lirismo.Abraço
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