sábado, 3 de julho de 2021

Cantiga de Maio - Jorge de Sena

 

Cantiga de Maio

 

Da prisão negra em que estavas a

porta abriu-se p’ra rua. Já sem

algemas escravas, igual à cor que

sonhavas, vais vestida de estar nua.

Liberdade, liberdade,

tem cuidado que te matam.

Na rua passas cantando, e o

povo canta contigo. Por onde

tu vais passando mais gente se

vai juntando, porque o povo é

teu amigo.

Liberdade, liberdade,

tem cuidado que te matam.

Entre o povo que te aclama,

contente de poder ver-te, há gente

que por ti chama para arrastar-te na

lama em que outros irão prender-te.

Liberdade, liberdade,

tem cuidado que te matam.

Muitos correndo apressados

querem ter-te só p’ra si; e gritam

tão de esganados só por tachos

cobiçados, e não por amor de ti.

Liberdade, liberdade,

tem cuidado que te matam.

Na sombra dos seus salões de

mandar em companhias,

poderosos figurões

afiam já os facões

com que matar alegrias.

Liberdade, liberdade,

tem cuidado que te matam.

E além do mar oceano o maligno

grão poder já se apresta p’ra teu

dano, todo violência e engano,

para deitar-te a perder.

Liberdade, liberdade,

tem cuidado que te matam.

Com desordens, falsidade,

economia desfeita; com

calculada maldade, promessas de

felicidade e a miséria mais

estreita.

Liberdade, liberdade,

tem cuidado que te matam.

Que muito povo se assuste,

julgando que és culpada, eis o

terrível embuste por qualquer

preço que custe com que te

armam a cilada.

Liberdade, liberdade,

tem cuidado que te matam.

Tens de saber que o inimigo

quer matar-te à falsa-fé. Ah tem

cuidado contigo; quem te

respeita é um amigo, quem não

respeita não é.

Liberdade, liberdade,

tem cuidado que te matam.

 

 Jorge de Sena

Santa Bárbara, 4/6/1974

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