terça-feira, 5 de novembro de 2024

Os Anjos - Renato Russo

Os Anjos

Hoje não dá
Hoje não dá
Não sei mais o que dizer
E nem o que pensar

Hoje não dá
Hoje não dá
A maldade humana agora não tem nome
Hoje não dá

( Pegue duas medidas de estupidez
Junte trinta e quatro partes de mentira
Coloque tudo numa forma untada previamente
Com promessas não cumpridas
Adicione a seguir o ódio e a inveja
Às dez colheres cheias de burrice
Mexa tudo e misture bem
E não se esqueça: antes de levar ao forno
Temperar com essência de espírito de porco
Duas xícaras de indiferença
E um tablete e meio de preguiça )

Hoje não dá
Hoje não dá
Está um dia tão bonito lá fora
E eu quero brincar
Mas hoje não dá
Hoje não dá
Vou consertar a minha asa quebrada
E descansar

Gostaria de não saber destes crimes atrozes
É todo dia agora e o que vamos fazer ?
Quero voar prá bem longe mas hoje não dá
Não sei o que pensar e nem o que dizer

Só nos sobrou do amor
A falta que ficou

Renato Russo

sábado, 2 de novembro de 2024

Isto - João José Cachofel

 

Isto

de ser o que se não é,

de andar sempre a mentir

(quantas vezes a nós próprios!)

tiranizados,

forçados,

chegando mesmo a esquecer,

por vezes,

que somos bois debaixo de uma canga:

Isto,

juro-vos,

ainda há de acabar.


João José Cachofel

quinta-feira, 31 de outubro de 2024

A poesia nas celas de Guantánamo - Hannah Arend

Even if the pain of the wound increases

(Mesmo que a dor da ferida aumente)

 A poesia nas celas de Guantánamo

Não há bondade

onde não resplandeça uma claridade,

nem silêncio

onde não ressoe um som.

Desperta o silencioso

- que se mantém dormente.

ilumina a escuridão

que nos criou.

 

Não há trevas

que a luz não vença,

nem silêncio

que os sons não entoem.

Mas essa calma

que repousa no incerto

escurece em silêncio

a declaração tardia.

Hannah Arend

segunda-feira, 28 de outubro de 2024

Canção do Semeador - Miguel Torga

 

Canção do Semeador

 

Na terra negra da vida,

Pousio do desespero,

É que o Poeta semeia

Poemas de confiança.

O Poeta é uma criança

Que devaneia.

 

Mas todo o semeador

Semeia contra o presente.

Semeia como vidente

A seara do futuro,

Sem saber se o chão é duro

E lhe recebe a semente.

 

Miguel Torga

 

sábado, 26 de outubro de 2024

Pelos olhos de três crianças - Fidaa Ziyad

Pelos olhos de três crianças

Vivo este genocídio através do imaginário de três meninos

O primeiro esconde-se sob os lençóis

Dizendo, querer ser um fantasma

Para que os aviões não o vejam

O segundo dizia, que a queda dos navios de guerra

Era a voz do polvo no mar

E a terceira, uma menina: queria ser uma tartaruga

Para esconder todos

Sob a sua carapaça

 

Ó tu, mão da imaginação,

embala o sono destes meninos,

preserva para eles todos os sonhos.

Ó tu, mão da imaginação,

não vás para além do horror da realidade.

Fidaa Ziyad

 

Fidaa Ziyad é um poeta de Gaza. Este poema foi escrito sob bombardeio em 24 de outubro de 2023, publicado em 25 de novembro e revisado em 5 de dezembro. Transmitido no Facebook na série de videoclips intitulada “Isto é Gaza, textos literários”, lidos por Fidaa Allawzi

Fidaa Ziyad est poétesse de Gaza. Ce poème a été écrit sous le bombardement le 24 octobre 2023, publié le 25 novembre, revu le 5 décembre. Diffusé sur Facebook dans la série de vidéoclips intitulée « This is Gaza, litterary texts », lu par Fidaa Allawzi.

Je vis ce génocide à travers l’imaginaire de trois enfants
Le premier se cachait sous les draps
En disant je voudrais être un fantôme
Pour que les avions ne me voient pas
Le deuxième disait, du fracas des navires de guerre
C’est la voix de la pieuvre dans la mer
Et le troisième, une petite fille : Je voudrais être une tortue
Pour cacher tout le monde
Sous ma carapace

Ô toi la main de l’imaginaire
Berce le sommeil de ces petits
Préserve pour eux tous ces rêves
Ô toi la main de l’imaginaire
Ne va pas plus loin que l’horreur du réel

Fidaa Ziyad est poétesse de Gaza. Ce poème a été écrit sous le bombardement le 24 octobre 2023, publié le 25 novembre, revu le 5 décembre. Diffusé sur Facebook dans la série de vidéoclips intitulée « This is Gaza, litterary texts », lu par Fidaa Allawzi.

ATTRAVERSO GLI OCCHI DI TRE BAMBINI

Fidaa Ziyad è una poetessa di Gaza. Questa poesia è stata scritta sotto bombardamento il 24 ottobre 2023, pubblicata il 25 novembre, rivista il 5 dicembre. Trasmesso su Facebook nella serie di videoclip dal titolo “This is Gaza, testi letterari”, letti da Fidaa Allawzi.

Vivo questo genocidio attraverso l’immaginazione di tre bambini
Il primo si è nascosto sotto le lenzuola
Dicendo Vorrei essere un fantasma
Perché gli aerei non mi vedano
Il secondo ha detto, dallo schianto delle navi da guerra
È la voce della piovra nel mare
E la terza, una bambina: Vorrei essere una tartaruga
Per nascondere tutti
Sotto il mio guscio

O tu, la mano dell’immaginazione,
culla il sonno di questi piccoli,
preserva per loro tutti questi sogni.
O tu, la mano dell’immaginazione,
non andare oltre l’orrore della realtà.

 

sexta-feira, 25 de outubro de 2024

Um dia de peste e rancor (poema de urgência de Vicente Zito Lema)

"Se disparassem mais a matar, país estava mais na ordem"

declarações do líder parlamentar do Chega

Um dia de peste e rancor

(poema de urgência de Vicente Zito Lema

 

Um dia gritaram de cara al sol

“Viva la morte”

E a luz fez-se escura / como escuro

é o sangue ...

 

Uma noite escreveram nas paredes

“Viva o cancro”

e a dor foi tão grande / tão espessa

que os corpos ficaram sem alma

 

Hoje vão a praças / ao obelisco

festejando

com bocas cheias de rancor

para que a Peste (há sempre uma peste...)

se pegue aos corpos de uma vez por todas aos

mais velhos

mais fracos

com mais fome

mais nus

 

Para que a Peste (há sempre uma peste...)

Seja como um rio que transborda

Que não vê / não sente / não perdoa

Tão natural e cruel como a morte...

Vicente Zito Lema

Un día de peste y rencor

(poema de urgencia de Vicente Zito Lema)

Un día gritaron de cara al sol
“Viva la muerte”
Y la luz se hizo oscura / como oscura
es la sangre…

Una noche escribieron por los muros
“Viva el cáncer”
y el dolor fue de tanto dolor / de tanta espesura
que los cuerpos quedaron sin alma

Hoy van a unas plazas / al obelisco
en plan de festejo
con bocas alzadas de rencor
para que la Peste (siempre hay una peste…)
se lleve de una buena vez a los cuerpos
más viejos
más débiles
más con hambre
más desnudos
Para que la Peste (siempre hay una peste…)
Sea como un río que se desmadra
Que no mira / no siente / no perdona
Tan natural y cruel como es la muerte…

Vicente Zito Lema

17 de agosto de 2020, día que, humillando el recuerdo de San Martín, y en perverso uso de la palabra Libertad, el fascismo convocó a celebrar

segunda-feira, 21 de outubro de 2024

Lápides - Afonso Duarte

Lápides

Não sou um velho vencido!
Mesmo à beira da morte
Quero erguer o braço forte
Da razão de ter vivido.

Voz de amor por quanto louvo
Caia-me o coração exangue,
Mas sem traição do meu sangue
Que é a voz do meu povo.

Afonso Duarte

sábado, 19 de outubro de 2024

quinta-feira, 17 de outubro de 2024

O Apocalipse Árabe - Etel Adnan

 


O Apocalipse Árabe

XXXVI 

Na escura irritação dos olhos esconde-se uma cobra

Nas expirações de americanos há um império em queda

Nas águas podres dos rios há os palestinos

FORA FORA de suas fronteiras a dor tem no pescoço uma coleira

Nos estames do trigo há insetos vacinados contra o pão

Nos barcos árabes há tubarões tombados de riso

Na barriga do camelo há rodovias cegas

FORA FORA do TEMPO há a esperança em pedaços da primavera

No dilúvio das nossas planícies não há chuvas mas pedras

Etel Adnan

traduções de Ricardo Domeneck

XXXVI 

The Arab Apocalypse

In the dark irritation of the eyes there is a snake hiding

In the exhalations of Americans there is a crumbling empire

In the foul waters of the rivers there are Palestinians

OUT OUT of its borders pain has a leash on its neck

In the wheat stalks there are insects vaccinated against bread

In the Arabian boats there are sharks shaken with laughter

In the camel’s belly there are blind highways

OUT OUT of TIME there is spring’s shattered hope

In the deluge on our plains there are no rains but stones



terça-feira, 15 de outubro de 2024

ADÃO CRUZ – [poema] CONTO TRISTE

 

Em, A Viagem dos Argonautas

 – UM BRAMIDO DE RAIVA

Senti um frio arrepiante e um buraco negro nas entranhas, tão fundo como a silhueta daquele maldito comboio da inglória velocidade rebentando a dor, direito à morte que está em pé na berma do cais pela mão de uma criança. O pai, nos braços de um escombro deste mundo sem sol nem lua, destino bárbaro e cruel da perda total, de mão dada com o filho contra a majestade de um gélido cadafalso de ferro, parido pela força de um desumano progresso, contra o qual se esmagam os pobres e desamparados que vivem em contramão.

Meu menino sonâmbulo de olhos negros e pálida doçura quase luminosa, firme, terna, inocente, confiante na verdade desfeita em sangue pela mentira das mãos fatalistas de uma sociedade podre.

Podia ser um menino nascido no berço do lado, ao colo de um pai ou de um avô trabalhador-milionário, desiludido, porque a sua fortuna não havia atingido o limiar do absurdo, o que não deixava de ser triste, mas a vida filha da puta, meu menino pobre, nada mais te deu do que um pai sem nada, sem prendas sem força nem entre-actos que te enxergassem melhor sorte do que a morte.

O monstruoso comboio entra na tua boca a toda a brida, o ar louco sai em turbilhão do teu pequenino peito sem eco, a vida estilhaça-se em ruidoso estrondo e o teu corpo frágil cai em pedaços sobre os bonecos das tuas meias, no pavoroso silêncio dos teus olhitos redondos.

E o mundo continua como se nada tivesse acontecido.

Quando vi que eras tu o menino que estava no curto caminho da morte pela mão de um pai que não dominava a fome, e não tinha dinheiro para te comprar uma bola, um pai que não sorria nem cantava para ti porque a alma se perdeu na praça do medo com o sol congelado na boca, senti um bramido de raiva e uma louca vontade de pedir contas a Deus.

sábado, 12 de outubro de 2024

Os bárbaros já Chegaram - António Miranda

 

Os bárbaros já Chegaram

Os bárbaros já chegaram e se tornaram
invisíveis em suas sinecuras,
com suas túnicas rubras, azuis, furta-cores
- chegaram sem resistência.

Chegaram os bárbaros
com sua declamatória fortuita
e sua eloquência gratuita
pregando uma democracia de simulacros
e semelhanças neutralizantes
ocultando as diferenças.

A eles entregaremos nossos cérebros jubilosos
nossas cabeças decapitadas em bandejas
às hostes recrutadas nos subúrbios sombrios
para amedrontar-nos e sujeitar-nos
ao moralismo mais pedestre e pedante.

Abandona o plano metafísico
e refugia-te no cotidiano mais reles,
vaticina Baudelaire.

Sigamos os exemplos mais edificantes
da mesmice, os fogos-fátuos da mediocridade
a exemplaridade de almanaque
e da bula de remédios, os redentorismos:
o cinismo dos disfarces e ventriloquias
o endeusamento coreográfico
do Líder narcisista e pantomímico
(que toma o poder e saqueia):
- suas sandálias de prata
e sua coroa de espinhos
de ouro reluzente.

Diante de tal fatalidade
- uomo qualunque -
só nos resta o estoicismo
para corromper os alicerces do absolutismo.

Assumir o anonimato
do mais reles existencialismo
esperando ventos admonitórios
que hão de vir, acreditemos.

António Miranda 

sexta-feira, 11 de outubro de 2024

O Mundo Está Prestes a Rebentar - Harold Pinter

O Mundo Está Prestes a Rebentar

Não olhes.
O mundo está prestes a rebentar.

Não olhes.
O mundo está prestes a despejar a sua luz
E a lançar-nos no abismo das suas trevas,
Aquele lugar negro, gordo e sem ar
Onde nós iremos matar ou morrer ou dançar ou chorar
Ou gritar ou gemer ou chiar que nem ratos
A ver se conseguimos de novo um posto de partida.


Harold Pinter

in "Várias Vozes"

Tradução de Pedro Marques e Jorge Silva Melo

 

segunda-feira, 7 de outubro de 2024

Aos Estados - Walt Whitman

 

Aos Estados

Aos Estados, ou a qualquer um deles, ou a uma cidade

a qualquer dos Estados, digo-lhes: Resiste muito, obedeçe

  pouco,

Uma vez admitida a obediência sem protesto, é a servidão total

Uma vez totalmente escravizado, nenhuma Nação, Estado

  ou Cidade da terra voltará a reconquistar a liberdade.

Walt Whitman



sábado, 5 de outubro de 2024

Sol de Agosto: V - João José Cachofel


Sol de Agosto:

V

 

Rebenta em mim um mar de força.

É maré cheia!

Mar que atiro à praia, seguro e rijo,

Sem que o tolham loas de sereia.

E a vida já me doeu...

Mas não tomei ópio nem olhei o céu,

embora chorasse como os vencidos.

Agora é sol e sangue

o búzio que trago nos sentidos.

 

João José Cachofel

1988, p.69).


quinta-feira, 3 de outubro de 2024

Como se fosse Ho Chin Min - Valdelice Pinheiro

Como se fosse Ho Chin Min

para o herói vietkong que queria a Paz

Era uma guerra

em um campo

de arroz.

Eu não entendo

guerra

em campo de arroz,

mas era uma guerra

em um campo

de arroz.

Homens e mulheres,

crianças, cães e aves

se escondiam,

nessa agonia

de medo e morte.

Mas de repente,

nesse fogo,

entre uma bala

e uma bomba

passou uma borboleta

 

Valdelice Pinheiro

quinta-feira, 26 de setembro de 2024

Deus abençoe a América - Harold Pinter

Deus abençoe a América

Lá vão eles outra vez,

Os Ianques e as suas blindadas paradas

Entoando as suas baladas de alegria

A galope pelo vasto mundo

Louvando o Deus da América.

 

As sarjetas estão entupidas de mortos

Dos que não puderam alistar-se

Dos outros que se recusam a cantar

Dos que estão a perder a voz

Dos que esqueceram a música.

 

Os cavaleiros têm chicotes que ferem.

A tua cabeça rola para a areia

A tua cabeça é uma poça no lixo

A tua cabeça é uma nódoa no pó

 

Os teus olhos apagaram-se e o teu nariz

Fareja apenas o fedor dos mortos

E todo o ar morto está vivo

Com o cheiro do Deus da América.

 

Harold Pinter

in Guerra

Tradução de Pedro Marques, Jorge Silva Melo e Francisco Frazão,

 Quasi Edições, Junho 2003

 

 

terça-feira, 24 de setembro de 2024

FOTOGRAFIA DO 11 DE SETEMBRO - Wisława Szymborska

 

FOTOGRAFIA DO 11 DE SETEMBRO

Pularam dos andares em chamas –
um, dois, alguns outros,
acima, abaixo.
A fotografia os manteve em vida,
e agora os preserva
acima da terra rumo à terra.
Ainda estão completos,
cada um com seu próprio rosto
e sangue bem guardado.
Há tempo suficiente
para cabelos voarem,
para chaves e moedas
caírem dos bolsos.
Permanecem nos domínios do ar,
na esfera de lugares
que acabam de se abrir.
Só posso fazer duas coisas por eles –
descrever este voo
e não acrescentar o último verso.

Wisława Szymborska