Senti um frio arrepiante e um buraco negro nas
entranhas, tão fundo como a silhueta daquele maldito comboio da inglória
velocidade rebentando a dor, direito à morte que está em pé na berma do cais
pela mão de uma criança. O pai, nos braços de um escombro deste mundo sem sol
nem lua, destino bárbaro e cruel da perda total, de mão dada com o filho contra
a majestade de um gélido cadafalso de ferro, parido pela força de um desumano
progresso, contra o qual se esmagam os pobres e desamparados que vivem em contramão.
Meu menino sonâmbulo de olhos negros e pálida
doçura quase luminosa, firme, terna, inocente, confiante na verdade desfeita em
sangue pela mentira das mãos fatalistas de uma sociedade podre.
Podia ser um menino nascido no berço do lado, ao
colo de um pai ou de um avô trabalhador-milionário, desiludido, porque a sua
fortuna não havia atingido o limiar do absurdo, o que não deixava de ser
triste, mas a vida filha da puta, meu menino pobre, nada mais te deu do que um
pai sem nada, sem prendas sem força nem entre-actos que te enxergassem melhor
sorte do que a morte.
O monstruoso comboio entra na tua boca a toda a
brida, o ar louco sai em turbilhão do teu pequenino peito sem eco, a vida
estilhaça-se em ruidoso estrondo e o teu corpo frágil cai em pedaços sobre os
bonecos das tuas meias, no pavoroso silêncio dos teus olhitos redondos.
E o mundo continua como se nada tivesse
acontecido.
Quando vi que eras tu o menino que estava no
curto caminho da morte pela mão de um pai que não dominava a fome, e não tinha
dinheiro para te comprar uma bola, um pai que não sorria nem cantava para ti
porque a alma se perdeu na praça do medo com o sol congelado na boca, senti um
bramido de raiva e uma louca vontade de pedir contas a Deus.
Os bárbaros já chegaram e se
tornaram
invisíveis em suas sinecuras,
com suas túnicas rubras, azuis, furta-cores
- chegaram sem resistência.
Chegaram os bárbaros
com sua declamatória fortuita
e sua eloquência gratuita
pregando uma democracia de simulacros
e semelhanças neutralizantes
ocultando as diferenças.
A eles entregaremos nossos
cérebros jubilosos
nossas cabeças decapitadas em bandejas
às hostes recrutadas nos subúrbios sombrios
para amedrontar-nos e sujeitar-nos
ao moralismo mais pedestre e pedante.
Abandona o plano metafísico
e refugia-te no cotidiano mais reles,
vaticina Baudelaire.
Sigamos os exemplos mais
edificantes
da mesmice, os fogos-fátuos da mediocridade
a exemplaridade de almanaque
e da bula de remédios, os redentorismos:
o cinismo dos disfarces e ventriloquias
o endeusamento coreográfico
do Líder narcisista e pantomímico
(que toma o poder e saqueia):
- suas sandálias de prata
e sua coroa de espinhos
de ouro reluzente.
Diante de tal fatalidade
- uomo qualunque -
só nos resta o estoicismo
para corromper os alicerces do absolutismo.
Assumir o anonimato
do mais reles existencialismo
esperando ventos admonitórios
que hão de vir, acreditemos.
Não olhes.
O mundo está prestes a despejar a sua luz
E a lançar-nos no abismo das suas trevas,
Aquele lugar negro, gordo e sem ar
Onde nós iremos matar ou morrer ou dançar ou chorar
Ou gritar ou gemer ou chiar que nem ratos
A ver se conseguimos de novo um posto de partida.
Pularam dos andares em chamas –
um, dois, alguns outros,
acima, abaixo.
A fotografia os manteve em vida,
e agora os preserva
acima da terra rumo à terra.
Ainda estão completos,
cada um com seu próprio rosto
e sangue bem guardado.
Há tempo suficiente
para cabelos voarem,
para chaves e moedas
caírem dos bolsos.
Permanecem nos domínios do ar,
na esfera de lugares
que acabam de se abrir.
Só posso fazer duas coisas por eles –
descrever este voo
e não acrescentar o último verso.
Quero este abril que me leva
pela mão à Liberdade;
que faz esquecer a treva,
que me inunda de verdade.
Quero este abril que me leva
pela mão à Liberdade.
Quero este abril que me faz
ser melhor prá o meu irmão;
e que me fala de paz
e me promete mais pão.
Quero este abril que me faz
ser melhor p´rá o meu irmão.
Quero este abril que nos diz
que a Pátria será de todos;
e pr´á o homem ser feliz
há-de nascer sol a todos.
Quero este abril que nos diz
que a Pátria será de todos.
Quero este abril que aos meus braços
há-de dar a justa paga;
que entre lutas e fracassos
um mundo novo nos traga.
Quero este abril que aos meus braços
há-de dar a justa paga.
Quero este abril amigo
que é fonte de quanto valho,
como música de trigo,
ou poemas de trabalho..
Quero este abril amigo
que é fonte de quanto valho.
Quero este abril— voo de asa —
que a todos dê intrução;
que a todos dê uma casa
e mais saúde e mais pão.
Quero este abril — voo de asa —
que a todos dê instrução.
Porque, instruído, este povo
vencerá a escuridão;
e verá o mundo novo
construído por sua mão.
Porque, instruído, este povo
vencerá a escuridão.
Querer a vida melhor
é este querer de abril,
contra algum gesto opressor,
ou contra aquilo que é vil.
— Que a vida será melhor
se defendermos abril.
Vou contar-te em segredo
quem sou eu,
assim, em voz alta
dir-me-ás quem és,
quanto ganhas,
em que fábrica trabalhas,
em que mina,
em que farmácia,
tenho uma obrigação terrível:
e é saber,
saber tudo,
dia e noite saber
como te chamas,
é esse o meu ofício,
conhecer uma vida
não basta,
nem conhecer todas as vidas,
é necessário,
verás,
há que desentranhar,
raspar profundamente
e como numa tela
as linhas ocultaram,
com a sua cor, a trama
do tecido,
eu apago as cores
e busco até achar
o tecido profundo,
assim também encontro
a unidade dos homens,
e no pão
busco
para além da forma:
gosto do pão, mordo-o,
e então
vejo o trigo
os trigais temporões,
a verde forma que tem a Primavera,
as raízes, a água,
por isso
para além do pão,
vejo a terra,
e a sua unidade,
a água,
o homem,
e tudo provo assim
buscando-te
em tudo,
ando, nado, navego,
até encontrar-te,
e pergunto-te então
como te chamas,
a rua e o número,
para que recebas
as minhas cartas,
para que te diga
quem sou e quanto ganho,
onde vivo,
e como era o meu pai.
Vês como sou simples,
e como és simples,
não se trata
de nada complicado,
eu trabalho contigo,
tu vives, vais e vens,
de um lado para o outro,
é muito simples:
és a vida,
és transparente
como a água,
e sou assim também,
o meu dever é esse:
ser transparente,
todos os dias
me educo,
todos os dias me penteio
a pensar como pensas,
e ando
como andas,
como, como tu comes,
tenho nos braços o meu amor
como tens a tua namorada,
e então
quando isto está provado,
quando somos iguais
escrevo,
escrevo com a tua vida e com a minha,
com o teu amor e com os meus,
com todas as tuas dores
e então
já somos diferentes,
porque, com a mão sobre o teu ombro,
como velhos amigos
digo-te ao ouvido:
não sofras,
está perto o dia,
vem,
vem comigo,
vem
com todos
os que se parecem contigo,
os mais simples,
vem,
não sofras,
vem comigo,
porque, embora o não saibas,
isso, sim, sei-o eu:
sei para onde vamos,
e esta é a palavra:
não sofras
pois venceremos,
havemos de vencer,
ou mais simples, nós,
venceremos,
mesmo que não o creias,
venceremos.
A pena que
me dá ver essa gente
Com sacos sobre os ombros, carregadíssima!...
Às vezes é meio-dia, o sol tão quente,
E os fardos a pesar, Virgem Santíssima!...
À porta dos
monhés*, humildemente,
Mal a manhã desponta a vir suavíssima,
Vestindo rotas sacas, tristemente
Lá vão 'spreitando a carga pesadíssima...
Quantos,
velhinhos já, avós talvez.
Dez vezes, vinte vezes, lés a lés
Num dia só percorrem a cidade!
Ó negros!
Que penoso é viver
A vida inteira aos fardos de quem quer
E na velhice ao pão da caridade...
(último capítulo das memórias de Pablo Neruda, confesso que vivi)
Meu povo tem sido o mais atraiçoado
deste tempo. Dos desertos do salitre, das minas submarinas do carvão,
das alturas terríveis onde jaz o cobre e onde as mãos de meu povo os
extraem com trabalho desumano, surgiu um movimento libertador de
importância grandiosa. Esse movimento levou à presidência do Chile um
homem chamado Salvador Allende para que realizasse reformas e medidas de
justiça inadiáveis, para que resgatasse nossas riquezas nacionais das
garras estrangeiras.
Onde estive, nos países mais longínquos,
os povos admiraram o Presidente Allende e elogiaram o extraordinário
pluralismo de nosso governo. Jamais na história da sede das Nações
Unidas em Nova Iorque se escutou uma ovação como a que os representantes
de todo o mundo proporcionaram ao presidente do Chile.
Aqui no Chile estava se construindo,
entre imensas dificuldades, uma sociedade verdadeiramente justa, erguida
sobre a base de nossa soberania, de nosso orgulho nacional, do heroísmo
dos melhores habitantes do Chile. Do nosso lado, do lado da revolução
chilena, estavam a constituição e a lei, a democracia e a esperança.
Do outro lado não faltava nada. Tinham
arlequins e polichinelos, palhaços a granel, terroristas de pistola e
prisão, monges falsos e militares degradados. Uns e outros davam voltas
no carrossel do despeito. O fascista Jarpa ia de mãos dadas com seus
sobrinhos de “Pátria e Liberdade”, dispostos a quebrar a cabeça e a alma
de tudo quanto existe, com o propósito de recuperar o grande latifúndio
que eles chamavam Chile. Junto com eles, para amenizar a farandula,
dançava um grande banqueiro e dançarino, um tanto manchado de sangue.
Era o campeão de rumba González Videla, que rumbeando entregou faz tempo
seu partido aos inimigos do povo. Agora era Frei quem oferecia seu
partido democrata-cristão aos mesmos inimigos do povo, dançando segundo a
música deles, dançando além disso com o ex-coronel Viaux, de cuja
canalhice foi cúmplice. Estes eram os principais artistas da comédia.
Tinham preparados os víveres do monopólio, os “miguelitos”, os garrotes e
as mesmas balas que há pouco tempo feriram de morte nosso povo em
Iquique, em Ranquín, em Salvador, em Puerto Montt, em José María Caro,
em Frutillar, em Puente Alto e em tantos outros lugares. Os assassinos
de Hernán Mery dançavam com os que deveriam defender sua memória.
Dançavam com naturalidade, hipocritamente. Sentiam-se ofendidos quando
lhes reprovavam esses “pequenos detalhes”.
O Chile tem uma longa história civil com
poucas revoluções e muitos governos estáveis, conservadores e
medíocres. Muitos presidentes menores e somente dois grandes
presidentes: Balmaceda e Allende. É curioso que os dois provinham do
mesmo meio, da burguesia endinheirada, que aqui chamamos aristocracia.
Como homens de princípios, empenhados em engrandecer um país diminuído
pela oligarquia medíocre, os dois foram conduzidos à morte da mesma
maneira. Balmaceda foi levado ao suicídio por resistir na entrega da
riqueza salitreira às companhias estrangeiras.
Allende foi assassinado por ter
nacionalizado a outra riqueza do subsolo chileno, o cobre. Em ambos os
casos, a oligarquia chilena organizou revoluções sangrentas. Em ambos os
casos os militares fizeram o papel de matilha. As companhias inglesas
no período de Balmaceda e as norte-americanas no período de Allende
favoreceram estes movimentos militares.
Em ambos os casos, as casas dos
presidentes foram saqueadas por ordem de nossos distinguidos
“aristocratas”. Os salões de Ralmaceda foram destruídos a golpes de
machado. A casa de Allende, graças ao progresso, foi bombardeada do ar
por nossos heróicos aviadores.
No entanto, estes dois homens foram
muito diferentes. Balmaceda foi um orador cativante. Tinha um
temperamento imperioso que o aproximava cada vez mais da autoridade
unipessoal. Estava seguro da elevação de seus propósitos. A todo
instante se viu rodeado de inimigos. Sua superioridade sobre o meio em
que vivia era tão grande e tão grande sua solidão que acabou por se
reconcentrar em si mesmo. O povo que devia ajudá-lo não existia como
força, quer dizer, não estava organizado. O presidente estava condenado a
se conduzir como um iluminado, como um sonhador: seu sonho de grandeza
ficou no sonho. Depois de seu assassinato, os vorazes mercadores
estrangeiros e os parlamentares criollos se apossaram do salitre. Para
os estrangeiros, a propriedade e as concessões; para os criollos, os
subornos. Recebidos os trinta dinheiros, tudo voltou à normalidade. O
sangue de uns quantos milhares de homens do povo secou logo nos campos
de batalha. Os operários mais explorados do mundo, os das regiões do
Norte do Chile, não cessaram de produzir imensas quantidades de libras
esterlinas para a City de Londres.
Allende nunca foi um grande orador. E
como estadista era um governante que fazia consultas antes de tomar
qualquer medida. Foi o antiditador, o democrata por princípio até nos
menores detalhes. Coube-lhe um país que já não era a nação inexperiente
de Balmaceda; encontrou uma classe operária poderosa que sabia o que
estava fazendo. Allende era um dirigente coletivo; um homem que, sem
sair das classes populares, era um produto da luta dessas classes contra
o imobilismo e a corrupção de seus exploradores. Por tais motivos e
razões, a obra que Allende realizou em tão curto tempo é superior à de
Balmaceda; mais ainda, é a mais importante da história do Chile. Só a
nacionalização do cobre foi uma empresa titânica. E a destruição dos
monopólios, a profunda reforma agrária e muitos objetivos mais que foram
cumpridos sob seu governo de essência coletiva.
As obras e os feitos de Allende, de
indelével valor nacional, enfureceram os inimigos de nossa liberação. O
simbolismo trágico desta crise se revela no bombardeio do palácio do
governo. A gente evoca a blitzkrieg, da aviação nazista contra indefesas
cidades estrangeiras, espanholas, inglesas, russas. Agora sucedia o
mesmo crime no Chile; pilotos chilenos atacavam em piquê o palácio que
durante dois séculos foi o centro da vida civil do país.
Escrevo estas rápidas linhas para minhas
memórias há apenas três dias dos fatos inqualificáveis que levaram à
morte meu grande companheiro, o Presidente Allende (nota ditirâmbica: assassinado após um golpe militar em 11 de setembro de 1973).
Seu assassinato foi mantido em silêncio, foi enterrado secretamente,
permitiram somente à sua viúva acompanhar o imortal cadáver. A versão
dos agressores é que acharam seu corpo inerte, com mostras visíveis de
suicídio. A versão que foi publicada no estrangeiro é diferente. Após o
bombardeio aéreo, vieram os tanques, muitos tanques, para lutar
intrepidamente contra um só homem: o Presidente da República do Chile,
Salvador Allende, que os esperava em seu gabinete, sem outra companhia a
não ser seu grande coração envolto em fumaça e chamas.
Não podiam perder uma ocasião tão boa.
Era preciso metralhá-lo porque jamais renunciaria a seu cargo. O corpo
foi enterrado secretamente num lugar qualquer. O cadáver que foi para a
sepultura acompanhado por uma única mulher, que levava em si mesma toda a
dor do mundo, a gloriosa figura morta ia crivada e despedaçada pelas
balas das metralhadoras dos soldados do Chile, que outra vez tinham
atraiçoado o Chile.