terça-feira, 19 de novembro de 2024

SONETO DE ABRIL - Natália Correia

SONETO DE ABRIL

Evoé! de pâmpano os soldados
rompem do tempo em que Evoé! a terra
salvé rainha descruzando os braços
com seu pé de papiro pisa a fera.

Na écloga dos rostos despontados
onde dos corvos se retira a treva,
de beijo em beijo as ruas são bailados
mudam-se as casas para a primavera.

Evoé! o povo abre o touril
e sai o Sol perfeitamente Abril
maravilha da Pátria ressurrecta.

Evoé! evoé! Tágides minhas
outra vez prateadas campainhas
sois na cabeça em fogo do poeta.

Natália Correia

António Ramos Rosa (poema dedicado a Vasco Gonçalves)

 

DAQUI DESTE DESERTO EM QUE PERSISTO


Nenhum ruído no branco.
Nesta mesa onde cavo e escavo
rodeado de sombras
sobre o branco
abismo
desta página
em busca de uma palavra

escrevo cavo e escavo a cave desta página
atiro o branco sobre o branco
em busca de um rosto
ou folha
ou de um corpo intacto
a figura de um grito
ou às vezes simplesmente uma pedra

busco no branco o nome do grito
o grito do nome
busco
com uma fúria sedenta
a palavra que seja
a água do corpo a corpo
intacto no silêncio do seu grito
ressurgindo do abismo da sede
com a boca de pedra
com os dentes das letras
com o furor dos punhos
nas pedras

Sou um trabalhador pobre
que escreve palavras pobres quase nulas
às vezes só em busca de uma pedra
uma palavra
violenta e fresca
um encontro talvez com o ínfimo
a orquestra ao rés da erva
um insecto estridente
o nome branco à beira da água
o instante da luz num espaço aberto

Pus de parte as palavras gloriosas
na esperança de encontrar um dia
o diadema no abismo
a transformação do grito
num corpo
descoberto na página do vento
que sopra deste buraco
desta cinzenta ferida
no deserto.

Aqui as minhas palavras são frias
têm o frio da página
e da noite
de todas as sombras que me envolvem
são palavras
são palavras frágeis como insectos
como pulsos
e acumulo pedras sobre pedras
cavo e escavo a página deserta
para encontrar um corpo
entre a vida e a morte
entre o silêncio e o grito

Que tenho eu para dizer mais do que isto
sempre isto desta maneira ou doutra
que procuro eu senão falar
desta busca vã
de um espaço em que respira
a boca de mil bocas
do corpo único no abismo branco

sou um trabalhador pobre
nesta mina branca
onde todas as palavras estão ressequidas
pelo ardor do deserto
pelo frio do abismo total

Que tenho eu para dizer
neste país
se um homem levanta os braços
e grita com os braços
o que mais oculto havia
na secreta ternura de uma boca
que era a única boca do seu povo
Que posso eu fazer senão
daqui
deste deserto
em que persisto
chamar-lhe camarada


António Ramos Rosa

(poema dedicado a Vasco Gonçalves)

sexta-feira, 15 de novembro de 2024

GANHAR A VIDA - Jeong Ho-Seung

GANHAR A VIDA

Mãe,
acho que vou fazer uma visita ao Inferno.
Não importa que seja muito longe.
Partirei de manhã como se estivesse a sair para o trabalho,
voltarei à noite como se tivesse saído do trabalho.
Não te esqueças das refeições, mastiga bem os alimentos antes de engolir,
certifica-te que desligas o gás quando saíres
e não te preocupes comigo.
O inferno deve ser um lugar onde vivem pessoas.
Se eu for para o Inferno para ganhar a vida
poderei finalmente tornar-me uma pessoa.

 Jeong Ho-Seung
(Coreia do Sul )
Mudado para português por _ Jorge Sousa Braga

terça-feira, 12 de novembro de 2024

Adonis / um espelho para o século xx - Ahmad Shamlou


Adonis / um espelho para o século xx

Um caixão com a cara de um rapaz
Um livro
Escrito no ventre de um corvo
Um animal selvagem escondido numa flor

Um rochedo
A respirar com os pulmões de um lunático:

É isto
É isto o Século Vinte

Ahmad Shamlou
trad. Maria de Lurdes Guimarães
campo das letras
2001

segunda-feira, 11 de novembro de 2024

. AO ENCONTRO DO ENCONTRO - Manuel Gusmão

 

Três curtos discursos em homenagem póstuma a Álvaro Cunhal

[primeiro discurso "Uma chama não se prende" AQUI]

 

2. AO ENCONTRO DO ENCONTRO

 

para que eu pudesse fazer o meu caminho pelo

caminho comum e partilhar o tempo

a invenção, o desejo, o trabalho e a luta por

uma terra sem amos

 

para que nas histórias lidas desde a infância

eu aprendesse a descobrir os meus

a articular aquelas palavras

sobre as quais o confronto ainda não terminou

e assim nos movem para que eu pudesse sentir-me esperado sobre

esta terra tão dilacerantemente bela

e tão insuportavelmente devasta

 

para que tendo aprendido a falar eu tivesse

podido encontrar os outros na minha língua

para que eu pudesse olhar, estender as mãos

e encontrar o corpo do mundo

como a minha tarefa comum

 

para que eu viesse e pudesse chegar a esta reunião contínua

esta assembleia de homens

explorados e livres, oprimidos e

livres

 

foi necessário que a convocatória chegasse até mim

foi necessário que eles continuassem reunidos e me esperassem

foi necessário que tu tivesses vindo e chegado antes

que te tivessem acolhido e te tivessem transformado o nome próprio

em nome comum


Manuel Gusmão

domingo, 10 de novembro de 2024

NA MORTE DE ÁLVARO CUNHAL - Yvette K. Centeno

 

NA MORTE DE ÁLVARO CUNHAL

 

Morreu um Bravo:

nem tudo sombra

nem tudo glória

 

Fica o exemplo:

a voz que não se renega

o corpo que não se encolhe

 

a luz da utopia

nas grades da memória

 

Yvette K. Centeno

Yvette K. Centeno nasceu em Lisboa, em 1940, numa família de origem germano-polaca. É casada, tem quatro filhos, e em sua casa a música e a literatura estiveram sempre presentes. Licenciou-se em Filologia Germânica com uma dissertação sobre O homem sem qualidades, de Musil, e doutorou-se com uma tese sobre A alquimia no Fausto de Goethe. É desde 1983 Professora Catedrática da Universidade Nova de Lisboa, onde fundou o Gabinete de Estudos de Simbologia, actualmente integrado no Centro de Estudos do Imaginário Literário. Ainda em estudante interessou-se por teatro, escreveu peças e rábulas, fundou o CITAC em Coimbra. Tem publicado literatura infantil, ensaio de investigação, poesia, teatro e ficção, com romances como Três histórias de amor (1994), Os jardins de Eva (1998) e Amores secretos (2006), tendo parte da sua obra traduzida em França, Espanha e Alemanha. Entre os autores que traduziu contam-se Shakespeare, Goethe, Stendhal, Brecht, Celan e Fassbinder.

quinta-feira, 7 de novembro de 2024

As grades - Francisco Paco Urondo

 Sono Nessuno

L’Ulisse di qualcuno


Do outro lado das grades está a realidade,

deste lado das grades também há realidade,

a única irreal são as grades.

Francisco Paco Urondo

Del otro lado de la reja está la realidad,

de este lado de la reja también está la realidad,

la única irreal es la reja.


terça-feira, 5 de novembro de 2024

Os Anjos - Renato Russo

Os Anjos

Hoje não dá
Hoje não dá
Não sei mais o que dizer
E nem o que pensar

Hoje não dá
Hoje não dá
A maldade humana agora não tem nome
Hoje não dá

( Pegue duas medidas de estupidez
Junte trinta e quatro partes de mentira
Coloque tudo numa forma untada previamente
Com promessas não cumpridas
Adicione a seguir o ódio e a inveja
Às dez colheres cheias de burrice
Mexa tudo e misture bem
E não se esqueça: antes de levar ao forno
Temperar com essência de espírito de porco
Duas xícaras de indiferença
E um tablete e meio de preguiça )

Hoje não dá
Hoje não dá
Está um dia tão bonito lá fora
E eu quero brincar
Mas hoje não dá
Hoje não dá
Vou consertar a minha asa quebrada
E descansar

Gostaria de não saber destes crimes atrozes
É todo dia agora e o que vamos fazer ?
Quero voar prá bem longe mas hoje não dá
Não sei o que pensar e nem o que dizer

Só nos sobrou do amor
A falta que ficou

Renato Russo

sábado, 2 de novembro de 2024

Isto - João José Cachofel

 

Isto

de ser o que se não é,

de andar sempre a mentir

(quantas vezes a nós próprios!)

tiranizados,

forçados,

chegando mesmo a esquecer,

por vezes,

que somos bois debaixo de uma canga:

Isto,

juro-vos,

ainda há de acabar.


João José Cachofel

quinta-feira, 31 de outubro de 2024

A poesia nas celas de Guantánamo - Hannah Arend

Even if the pain of the wound increases

(Mesmo que a dor da ferida aumente)

 A poesia nas celas de Guantánamo

Não há bondade

onde não resplandeça uma claridade,

nem silêncio

onde não ressoe um som.

Desperta o silencioso

- que se mantém dormente.

ilumina a escuridão

que nos criou.

 

Não há trevas

que a luz não vença,

nem silêncio

que os sons não entoem.

Mas essa calma

que repousa no incerto

escurece em silêncio

a declaração tardia.

Hannah Arend

segunda-feira, 28 de outubro de 2024

Canção do Semeador - Miguel Torga

 

Canção do Semeador

 

Na terra negra da vida,

Pousio do desespero,

É que o Poeta semeia

Poemas de confiança.

O Poeta é uma criança

Que devaneia.

 

Mas todo o semeador

Semeia contra o presente.

Semeia como vidente

A seara do futuro,

Sem saber se o chão é duro

E lhe recebe a semente.

 

Miguel Torga

 

sábado, 26 de outubro de 2024

Pelos olhos de três crianças - Fidaa Ziyad

Pelos olhos de três crianças

Vivo este genocídio através do imaginário de três meninos

O primeiro esconde-se sob os lençóis

Dizendo, querer ser um fantasma

Para que os aviões não o vejam

O segundo dizia, que a queda dos navios de guerra

Era a voz do polvo no mar

E a terceira, uma menina: queria ser uma tartaruga

Para esconder todos

Sob a sua carapaça

 

Ó tu, mão da imaginação,

embala o sono destes meninos,

preserva para eles todos os sonhos.

Ó tu, mão da imaginação,

não vás para além do horror da realidade.

Fidaa Ziyad

 

Fidaa Ziyad é um poeta de Gaza. Este poema foi escrito sob bombardeio em 24 de outubro de 2023, publicado em 25 de novembro e revisado em 5 de dezembro. Transmitido no Facebook na série de videoclips intitulada “Isto é Gaza, textos literários”, lidos por Fidaa Allawzi

Fidaa Ziyad est poétesse de Gaza. Ce poème a été écrit sous le bombardement le 24 octobre 2023, publié le 25 novembre, revu le 5 décembre. Diffusé sur Facebook dans la série de vidéoclips intitulée « This is Gaza, litterary texts », lu par Fidaa Allawzi.

Je vis ce génocide à travers l’imaginaire de trois enfants
Le premier se cachait sous les draps
En disant je voudrais être un fantôme
Pour que les avions ne me voient pas
Le deuxième disait, du fracas des navires de guerre
C’est la voix de la pieuvre dans la mer
Et le troisième, une petite fille : Je voudrais être une tortue
Pour cacher tout le monde
Sous ma carapace

Ô toi la main de l’imaginaire
Berce le sommeil de ces petits
Préserve pour eux tous ces rêves
Ô toi la main de l’imaginaire
Ne va pas plus loin que l’horreur du réel

Fidaa Ziyad est poétesse de Gaza. Ce poème a été écrit sous le bombardement le 24 octobre 2023, publié le 25 novembre, revu le 5 décembre. Diffusé sur Facebook dans la série de vidéoclips intitulée « This is Gaza, litterary texts », lu par Fidaa Allawzi.

ATTRAVERSO GLI OCCHI DI TRE BAMBINI

Fidaa Ziyad è una poetessa di Gaza. Questa poesia è stata scritta sotto bombardamento il 24 ottobre 2023, pubblicata il 25 novembre, rivista il 5 dicembre. Trasmesso su Facebook nella serie di videoclip dal titolo “This is Gaza, testi letterari”, letti da Fidaa Allawzi.

Vivo questo genocidio attraverso l’immaginazione di tre bambini
Il primo si è nascosto sotto le lenzuola
Dicendo Vorrei essere un fantasma
Perché gli aerei non mi vedano
Il secondo ha detto, dallo schianto delle navi da guerra
È la voce della piovra nel mare
E la terza, una bambina: Vorrei essere una tartaruga
Per nascondere tutti
Sotto il mio guscio

O tu, la mano dell’immaginazione,
culla il sonno di questi piccoli,
preserva per loro tutti questi sogni.
O tu, la mano dell’immaginazione,
non andare oltre l’orrore della realtà.

 

sexta-feira, 25 de outubro de 2024

Um dia de peste e rancor (poema de urgência de Vicente Zito Lema)

"Se disparassem mais a matar, país estava mais na ordem"

declarações do líder parlamentar do Chega

Um dia de peste e rancor

(poema de urgência de Vicente Zito Lema

 

Um dia gritaram de cara al sol

“Viva la morte”

E a luz fez-se escura / como escuro

é o sangue ...

 

Uma noite escreveram nas paredes

“Viva o cancro”

e a dor foi tão grande / tão espessa

que os corpos ficaram sem alma

 

Hoje vão a praças / ao obelisco

festejando

com bocas cheias de rancor

para que a Peste (há sempre uma peste...)

se pegue aos corpos de uma vez por todas aos

mais velhos

mais fracos

com mais fome

mais nus

 

Para que a Peste (há sempre uma peste...)

Seja como um rio que transborda

Que não vê / não sente / não perdoa

Tão natural e cruel como a morte...

Vicente Zito Lema

Un día de peste y rencor

(poema de urgencia de Vicente Zito Lema)

Un día gritaron de cara al sol
“Viva la muerte”
Y la luz se hizo oscura / como oscura
es la sangre…

Una noche escribieron por los muros
“Viva el cáncer”
y el dolor fue de tanto dolor / de tanta espesura
que los cuerpos quedaron sin alma

Hoy van a unas plazas / al obelisco
en plan de festejo
con bocas alzadas de rencor
para que la Peste (siempre hay una peste…)
se lleve de una buena vez a los cuerpos
más viejos
más débiles
más con hambre
más desnudos
Para que la Peste (siempre hay una peste…)
Sea como un río que se desmadra
Que no mira / no siente / no perdona
Tan natural y cruel como es la muerte…

Vicente Zito Lema

17 de agosto de 2020, día que, humillando el recuerdo de San Martín, y en perverso uso de la palabra Libertad, el fascismo convocó a celebrar

segunda-feira, 21 de outubro de 2024

Lápides - Afonso Duarte

Lápides

Não sou um velho vencido!
Mesmo à beira da morte
Quero erguer o braço forte
Da razão de ter vivido.

Voz de amor por quanto louvo
Caia-me o coração exangue,
Mas sem traição do meu sangue
Que é a voz do meu povo.

Afonso Duarte

sábado, 19 de outubro de 2024

quinta-feira, 17 de outubro de 2024

O Apocalipse Árabe - Etel Adnan

 


O Apocalipse Árabe

XXXVI 

Na escura irritação dos olhos esconde-se uma cobra

Nas expirações de americanos há um império em queda

Nas águas podres dos rios há os palestinos

FORA FORA de suas fronteiras a dor tem no pescoço uma coleira

Nos estames do trigo há insetos vacinados contra o pão

Nos barcos árabes há tubarões tombados de riso

Na barriga do camelo há rodovias cegas

FORA FORA do TEMPO há a esperança em pedaços da primavera

No dilúvio das nossas planícies não há chuvas mas pedras

Etel Adnan

traduções de Ricardo Domeneck

XXXVI 

The Arab Apocalypse

In the dark irritation of the eyes there is a snake hiding

In the exhalations of Americans there is a crumbling empire

In the foul waters of the rivers there are Palestinians

OUT OUT of its borders pain has a leash on its neck

In the wheat stalks there are insects vaccinated against bread

In the Arabian boats there are sharks shaken with laughter

In the camel’s belly there are blind highways

OUT OUT of TIME there is spring’s shattered hope

In the deluge on our plains there are no rains but stones