terça-feira, 15 de outubro de 2024

ADÃO CRUZ – [poema] CONTO TRISTE

 

Em, A Viagem dos Argonautas

 – UM BRAMIDO DE RAIVA

Senti um frio arrepiante e um buraco negro nas entranhas, tão fundo como a silhueta daquele maldito comboio da inglória velocidade rebentando a dor, direito à morte que está em pé na berma do cais pela mão de uma criança. O pai, nos braços de um escombro deste mundo sem sol nem lua, destino bárbaro e cruel da perda total, de mão dada com o filho contra a majestade de um gélido cadafalso de ferro, parido pela força de um desumano progresso, contra o qual se esmagam os pobres e desamparados que vivem em contramão.

Meu menino sonâmbulo de olhos negros e pálida doçura quase luminosa, firme, terna, inocente, confiante na verdade desfeita em sangue pela mentira das mãos fatalistas de uma sociedade podre.

Podia ser um menino nascido no berço do lado, ao colo de um pai ou de um avô trabalhador-milionário, desiludido, porque a sua fortuna não havia atingido o limiar do absurdo, o que não deixava de ser triste, mas a vida filha da puta, meu menino pobre, nada mais te deu do que um pai sem nada, sem prendas sem força nem entre-actos que te enxergassem melhor sorte do que a morte.

O monstruoso comboio entra na tua boca a toda a brida, o ar louco sai em turbilhão do teu pequenino peito sem eco, a vida estilhaça-se em ruidoso estrondo e o teu corpo frágil cai em pedaços sobre os bonecos das tuas meias, no pavoroso silêncio dos teus olhitos redondos.

E o mundo continua como se nada tivesse acontecido.

Quando vi que eras tu o menino que estava no curto caminho da morte pela mão de um pai que não dominava a fome, e não tinha dinheiro para te comprar uma bola, um pai que não sorria nem cantava para ti porque a alma se perdeu na praça do medo com o sol congelado na boca, senti um bramido de raiva e uma louca vontade de pedir contas a Deus.

sábado, 12 de outubro de 2024

Os bárbaros já Chegaram - António Miranda

 

Os bárbaros já Chegaram

Os bárbaros já chegaram e se tornaram
invisíveis em suas sinecuras,
com suas túnicas rubras, azuis, furta-cores
- chegaram sem resistência.

Chegaram os bárbaros
com sua declamatória fortuita
e sua eloquência gratuita
pregando uma democracia de simulacros
e semelhanças neutralizantes
ocultando as diferenças.

A eles entregaremos nossos cérebros jubilosos
nossas cabeças decapitadas em bandejas
às hostes recrutadas nos subúrbios sombrios
para amedrontar-nos e sujeitar-nos
ao moralismo mais pedestre e pedante.

Abandona o plano metafísico
e refugia-te no cotidiano mais reles,
vaticina Baudelaire.

Sigamos os exemplos mais edificantes
da mesmice, os fogos-fátuos da mediocridade
a exemplaridade de almanaque
e da bula de remédios, os redentorismos:
o cinismo dos disfarces e ventriloquias
o endeusamento coreográfico
do Líder narcisista e pantomímico
(que toma o poder e saqueia):
- suas sandálias de prata
e sua coroa de espinhos
de ouro reluzente.

Diante de tal fatalidade
- uomo qualunque -
só nos resta o estoicismo
para corromper os alicerces do absolutismo.

Assumir o anonimato
do mais reles existencialismo
esperando ventos admonitórios
que hão de vir, acreditemos.

António Miranda 

sexta-feira, 11 de outubro de 2024

O Mundo Está Prestes a Rebentar - Harold Pinter

O Mundo Está Prestes a Rebentar

Não olhes.
O mundo está prestes a rebentar.

Não olhes.
O mundo está prestes a despejar a sua luz
E a lançar-nos no abismo das suas trevas,
Aquele lugar negro, gordo e sem ar
Onde nós iremos matar ou morrer ou dançar ou chorar
Ou gritar ou gemer ou chiar que nem ratos
A ver se conseguimos de novo um posto de partida.


Harold Pinter

in "Várias Vozes"

Tradução de Pedro Marques e Jorge Silva Melo

 

segunda-feira, 7 de outubro de 2024

Aos Estados - Walt Whitman

 

Aos Estados

Aos Estados, ou a qualquer um deles, ou a uma cidade

a qualquer dos Estados, digo-lhes: Resiste muito, obedeçe

  pouco,

Uma vez admitida a obediência sem protesto, é a servidão total

Uma vez totalmente escravizado, nenhuma Nação, Estado

  ou Cidade da terra voltará a reconquistar a liberdade.

Walt Whitman



sábado, 5 de outubro de 2024

Sol de Agosto: V - João José Cachofel


Sol de Agosto:

V

 

Rebenta em mim um mar de força.

É maré cheia!

Mar que atiro à praia, seguro e rijo,

Sem que o tolham loas de sereia.

E a vida já me doeu...

Mas não tomei ópio nem olhei o céu,

embora chorasse como os vencidos.

Agora é sol e sangue

o búzio que trago nos sentidos.

 

João José Cachofel

1988, p.69).


quinta-feira, 3 de outubro de 2024

Como se fosse Ho Chin Min - Valdelice Pinheiro

Como se fosse Ho Chin Min

para o herói vietkong que queria a Paz

Era uma guerra

em um campo

de arroz.

Eu não entendo

guerra

em campo de arroz,

mas era uma guerra

em um campo

de arroz.

Homens e mulheres,

crianças, cães e aves

se escondiam,

nessa agonia

de medo e morte.

Mas de repente,

nesse fogo,

entre uma bala

e uma bomba

passou uma borboleta

 

Valdelice Pinheiro

quinta-feira, 26 de setembro de 2024

Deus abençoe a América - Harold Pinter

Deus abençoe a América

Lá vão eles outra vez,

Os Ianques e as suas blindadas paradas

Entoando as suas baladas de alegria

A galope pelo vasto mundo

Louvando o Deus da América.

 

As sarjetas estão entupidas de mortos

Dos que não puderam alistar-se

Dos outros que se recusam a cantar

Dos que estão a perder a voz

Dos que esqueceram a música.

 

Os cavaleiros têm chicotes que ferem.

A tua cabeça rola para a areia

A tua cabeça é uma poça no lixo

A tua cabeça é uma nódoa no pó

 

Os teus olhos apagaram-se e o teu nariz

Fareja apenas o fedor dos mortos

E todo o ar morto está vivo

Com o cheiro do Deus da América.

 

Harold Pinter

in Guerra

Tradução de Pedro Marques, Jorge Silva Melo e Francisco Frazão,

 Quasi Edições, Junho 2003

 

 

terça-feira, 24 de setembro de 2024

FOTOGRAFIA DO 11 DE SETEMBRO - Wisława Szymborska

 

FOTOGRAFIA DO 11 DE SETEMBRO

Pularam dos andares em chamas –
um, dois, alguns outros,
acima, abaixo.
A fotografia os manteve em vida,
e agora os preserva
acima da terra rumo à terra.
Ainda estão completos,
cada um com seu próprio rosto
e sangue bem guardado.
Há tempo suficiente
para cabelos voarem,
para chaves e moedas
caírem dos bolsos.
Permanecem nos domínios do ar,
na esfera de lugares
que acabam de se abrir.
Só posso fazer duas coisas por eles –
descrever este voo
e não acrescentar o último verso.

Wisława Szymborska

 

segunda-feira, 23 de setembro de 2024

LOUVOR DE ABRIL - A. Garibaldi

LOUVOR DE ABRIL

Quero este abril que me leva
pela mão à Liberdade;
que faz esquecer a treva,
que me inunda de verdade.
Quero este abril que me leva
pela mão à Liberdade.

Quero este abril que me faz
ser melhor prá o meu irmão;
e que me fala de paz
e me promete mais pão.
Quero este abril que me faz
ser melhor p´rá o meu irmão.

Quero este abril que nos diz
que a Pátria será de todos;
e pr´á o homem ser feliz
há-de nascer sol a todos.
Quero este abril que nos diz
que a Pátria será de todos.

Quero este abril que aos meus braços
há-de dar a justa paga;
que entre lutas e fracassos
um mundo novo nos traga.
Quero este abril que aos meus braços
há-de dar a justa paga.

Quero este abril amigo
que é fonte de quanto valho,
como música de trigo,
ou poemas de trabalho..
Quero este abril amigo
que é fonte de quanto valho.

Quero este abril— voo de asa —
que a todos dê intrução;
que a todos dê uma casa
e mais saúde e mais pão.
Quero este abril — voo de asa —
que a todos dê instrução.

Porque, instruído, este povo
vencerá a escuridão;
e verá o mundo novo
construído por sua mão.
Porque, instruído, este povo
vencerá a escuridão.

Querer a vida melhor
é este querer de abril,
contra algum gesto opressor,
ou contra aquilo que é vil.
— Que a vida será melhor
se defendermos abril.

A. Garibaldi


sexta-feira, 20 de setembro de 2024

A OLIVEIRA FOI UMA VEZ - Mahmud Darwich

A OLIVEIRA, FOI UMA VEZ..

A oliveira foi uma vez um bosque verde.

Foi, amado, e o ceio

um bosque azul.

Que os fizera mudar esta tarde?

Detiveram a camioneta dos operários a meio do caminho.

(Tranquilamente)

Durante algum tempo, o meu coração foi um passarinho azul.

Ó ninho do meu amado!

Comigo, brancos de todo os teus panos

foram, meu querido...

Que pude lavá-los esta tarde?

Porque eu nada entendo.

Retiveram o camião dos operários no meio do caminho.

(Tranquilamente)

E puseram-nos olhando para o Oriente.

(Tranquilamente)

Tens todas as minhas coisas:

a claridade, a sombra,

o anel de casamento, o que desejares,

o vale de oliveiras e figueiras.

Pela janela, penetrando no teu sonho,

achegar-me-ei junto a ti como todas as noites

e arremessar-te-ei um cravo.

Mas, não me repreendas se demoro um bocado,

pois me detiveram...

O olival estava sempre verde

(Estava, meu amado)

Mas, cinquenta vítimas

tornaram-no uma poça vermelha à tardinha.

Cinquenta, meu amado...

Mas, não me repreendas:

Assassinaram-me...

Assassinaram-me...

Assassinaram-me...

Mahmud Darwich


quinta-feira, 19 de setembro de 2024

5 de outubro de 1945 - Nazim Hikmet

5 de outubro de 1945

Ambos sabemos, meu amor,

eles ensinaram:

      a ficar com fome, com frio,

      o cansaço de morte

       e a estar separados.

Ainda não fomos obrigados a matar

e não aconteceu sermos mortos.

 

Ambos sabemos, meu amor,

nós podemos ensinar:

      a lutar pelo nosso povo

e a amar

a cada dia mais intensamente

       um pouco melhor.

Nazim Hikmet

5 Ekim 1945

İkimiz de biliyoruz, sevgilim,

örettiler:

                aç kalmayı, üümeyi,

                 yorgunluu ölesiye

                 ve birbirimizden ayrı dümeyi.

Henüz öldürmek zorunda bırakılmadık

ve öldürülmek ii geçmedi baımızdan.

 

İkimiz de biliyoruz, sevgilim,

öretebiliriz :

                  dövümeyi insanlarımız için

                   ve her gün biraz daha candan

                                                   biraz daha iyi

                                                                     sevmeyi...

Nâzim Hikmet

terça-feira, 17 de setembro de 2024

NOVO SERMÃO NEGRO - Jacques Romain

 

NOVO SERMÃO NEGRO

A Tristan Rémy

Eles cuspiram em Sua face seu desprezo frio

Como uma bandeira negra flutua ao vento abatida pela neve

Para fazer dele o pobre negro o deus dos poderosos

De seus trapos ornamentos de altar

De seu doce canto de miséria

De seu lamento trémulo de banjo

O tumulto orgulhoso da tempestade

De seus braços que rebocavam pesados barcos

no rio Jordão

A arma dos que lutam pela espada

De seu corpo prostrado como o nosso nas plantações de algodão

Tal um carvão ardente

Tal um carvão ardente em um arbusto de rosas brancas

O escudo dourado de sua fortuna

Eles branquearam Sua Face negra sob a saliva de seu desprezo frio

Eles cuspiram em Tua Face negra

Senhor, nosso amigo, nosso camarada

Tu que separaste do rosto da prostituta

Como um manto de geada seus longos cabelos

de sobre a fonte de suas lágrimas

Eles fizeram

Os ricos fariseus os latifundiários os banqueiros

Eles fizeram do Homem sangrando o deus sangrento

Oh Judas ri

Oh Judas ri:

Cristo entre dois ladrões como uma chama rasgada

no topo do mundo

Clareava a revolta dos escravos

Mas Cristo hoje está na casa dos ladrões

E seus braços se abrem nas catedrais a sombra estendida

do abutre

E nas cavernas dos monastérios o padre conta os

lucros dos trinta últimos

E os sinos das igrejas cospem a morte sobre as

multidões famintas

Nós não os perdoaremos pois eles sabem o

que fazem

Eles lincharam John que organizava o sindicato

Eles o caçaram como um lobo feroz com cães

através do bosque

Eles o penderam rindo ao tronco do velho sicômoro

Não, irmãos, camaradas

Não rezaremos mais

Nossa revolta se eleva como o grito do pássaro de tempestade

acima do salpicar podre dos mangues

Nós não cantaremos mais os tristes spirituals desesperados

Um outro canto surge de nossas gargantas

Nós defraudamos nossas bandeiras vermelhas

Manchadas do sangue de nossos justos

Sob este sinal nós marcharemos

Sob este sinal nós marchamos

De pé malditos da terra

De pé escravos da fome.

Jacques Romain

sábado, 14 de setembro de 2024

ODE AO HOMEM SIMPLES - Pablo Neruda

ODE AO HOMEM SIMPLES

Vou contar-te em segredo
quem sou eu,
assim, em voz alta
dir-me-ás quem és,
quanto ganhas,
em que fábrica trabalhas,
em que mina,
em que farmácia,
tenho uma obrigação terrível:
e é saber,
saber tudo,
dia e noite saber
como te chamas,
é esse o meu ofício,
conhecer uma vida
não basta,
nem conhecer todas as vidas,
é necessário,
verás,
há que desentranhar,
raspar profundamente
e como numa tela
as linhas ocultaram,
com a sua cor, a trama
do tecido,
eu apago as cores
e busco até achar
o tecido profundo,
assim também encontro
a unidade dos homens,
e no pão
busco
para além da forma:
gosto do pão, mordo-o,
e então
vejo o trigo
os trigais temporões,
a verde forma que tem a Primavera,
as raízes, a água,
por isso
para além do pão,
vejo a terra,
e a sua unidade,
a água,
o homem,
e tudo provo assim
buscando-te
em tudo,
ando, nado, navego,
até encontrar-te,
e pergunto-te então
como te chamas,
a rua e o número,
para que recebas
as minhas cartas,
para que te diga
quem sou e quanto ganho,
onde vivo,
e como era o meu pai.
Vês como sou simples,
e como és simples,
não se trata
de nada complicado,
eu trabalho contigo,
tu vives, vais e vens,
de um lado para o outro,
é muito simples:
és a vida,
és transparente
como a água,
e sou assim também,
o meu dever é esse:
ser transparente,
todos os dias
me educo,
todos os dias me penteio
a pensar como pensas,
e ando
como andas,
como, como tu comes,
tenho nos braços o meu amor
como tens a tua namorada,
e então
quando isto está provado,
quando somos iguais
escrevo,
escrevo com a tua vida e com a minha,
com o teu amor e com os meus,
com todas as tuas dores
e então
já somos diferentes,
porque, com a mão sobre o teu ombro,
como velhos amigos
digo-te ao ouvido:
não sofras,
está perto o dia,
vem,
vem comigo,
vem
com todos
os que se parecem contigo,
os mais simples,
vem,
não sofras,
vem comigo,
porque, embora o não saibas,
isso, sim, sei-o eu:
sei para onde vamos,
e esta é a palavra:
não sofras
pois venceremos,
havemos de vencer,
ou mais simples, nós,
venceremos,
mesmo que não o creias,
venceremos.


Pablo Neruda

,"Odes Elementares",1954
(tradução: José Bento

 

 

 

quinta-feira, 12 de setembro de 2024

CARREGADORES - RUI DE NORONHA

CARREGADORES

A pena que me dá ver essa gente
Com sacos sobre os ombros, carregadíssima!...
Às vezes é meio-dia, o sol tão quente,
E os fardos a pesar, Virgem Santíssima!...

À porta dos monhés*, humildemente,
Mal a manhã desponta a vir suavíssima,
Vestindo rotas sacas, tristemente
Lá vão 'spreitando a carga pesadíssima...

Quantos, velhinhos já, avós talvez.
Dez vezes, vinte vezes, lés a lés
Num dia só percorrem a cidade!

Ó negros! Que penoso é viver
A vida inteira aos fardos de quem quer
E na velhice ao pão da caridade...

 

RUI DE NORONHA

*Monhés – lojas de comerciantes indianos (ou mestiço de indiano com negro).

 

quarta-feira, 11 de setembro de 2024

SALVADOR ALLENDE, por PABLO NERUDA

 

   SALVADOR ALLENDE, por PABLO NERUDA

Salvador Allende e Pablo Neruda

Salvador Allende, por Pablo Neruda

(último capítulo das memórias de Pablo Neruda, confesso que vivi)

Meu povo tem sido o mais atraiçoado deste tempo. Dos desertos do salitre, das minas submarinas do carvão, das alturas terríveis onde jaz o cobre e onde as mãos de meu povo os extraem com trabalho desumano, surgiu um movimento libertador de importância grandiosa. Esse movimento levou à presidência do Chile um homem chamado Salvador Allende para que realizasse reformas e medidas de justiça inadiáveis, para que resgatasse nossas riquezas nacionais das garras estrangeiras.

Onde estive, nos países mais longínquos, os povos admiraram o Presidente Allende e elogiaram o extraordinário pluralismo de nosso governo. Jamais na história da sede das Nações Unidas em Nova Iorque se escutou uma ovação como a que os representantes de todo o mundo proporcionaram ao presidente do Chile.

Aqui no Chile estava se construindo, entre imensas dificuldades, uma sociedade verdadeiramente justa, erguida sobre a base de nossa soberania, de nosso orgulho nacional, do heroísmo dos melhores habitantes do Chile. Do nosso lado, do lado da revolução chilena, estavam a constituição e a lei, a democracia e a esperança.

Do outro lado não faltava nada. Tinham arlequins e polichinelos, palhaços a granel, terroristas de pistola e prisão, monges falsos e militares degradados. Uns e outros davam voltas no carrossel do despeito. O fascista Jarpa ia de mãos dadas com seus sobrinhos de “Pátria e Liberdade”, dispostos a quebrar a cabeça e a alma de tudo quanto existe, com o propósito de recuperar o grande latifúndio que eles chamavam Chile. Junto com eles, para amenizar a farandula, dançava um grande banqueiro e dançarino, um tanto manchado de sangue. Era o campeão de rumba González Videla, que rumbeando entregou faz tempo seu partido aos inimigos do povo. Agora era Frei quem oferecia seu partido democrata-cristão aos mesmos inimigos do povo, dançando segundo a música deles, dançando além disso com o ex-coronel Viaux, de cuja canalhice foi cúmplice. Estes eram os principais artistas da comédia. Tinham preparados os víveres do monopólio, os “miguelitos”, os garrotes e as mesmas balas que há pouco tempo feriram de morte nosso povo em Iquique, em Ranquín, em Salvador, em Puerto Montt, em José María Caro, em Frutillar, em Puente Alto e em tantos outros lugares. Os assassinos de Hernán Mery dançavam com os que deveriam defender sua memória. Dançavam com naturalidade, hipocritamente. Sentiam-se ofendidos quando lhes reprovavam esses “pequenos detalhes”.

O Chile tem uma longa história civil com poucas revoluções e muitos governos estáveis, conservadores e medíocres. Muitos presidentes menores e somente dois grandes presidentes: Balmaceda e Allende. É curioso que os dois provinham do mesmo meio, da burguesia endinheirada, que aqui chamamos aristocracia. Como homens de princípios, empenhados em engrandecer um país diminuído pela oligarquia medíocre, os dois foram conduzidos à morte da mesma maneira. Balmaceda foi levado ao suicídio por resistir na entrega da riqueza salitreira às companhias estrangeiras.

Allende foi assassinado por ter nacionalizado a outra riqueza do subsolo chileno, o cobre. Em ambos os casos, a oligarquia chilena organizou revoluções sangrentas. Em ambos os casos os militares fizeram o papel de matilha. As companhias inglesas no período de Balmaceda e as norte-americanas no período de Allende favoreceram estes movimentos militares.

 Em ambos os casos, as casas dos presidentes foram saqueadas por ordem de nossos distinguidos “aristocratas”. Os salões de Ralmaceda foram destruídos a golpes de machado. A casa de Allende, graças ao progresso, foi bombardeada do ar por nossos heróicos aviadores.

No entanto, estes dois homens foram muito diferentes. Balmaceda foi um orador cativante. Tinha um temperamento imperioso que o aproximava cada vez mais da autoridade unipessoal. Estava seguro da elevação de seus propósitos. A todo instante se viu rodeado de inimigos. Sua superioridade sobre o meio em que vivia era tão grande e tão grande sua solidão que acabou por se reconcentrar em si mesmo. O povo que devia ajudá-lo não existia como força, quer dizer, não estava organizado. O presidente estava condenado a se conduzir como um iluminado, como um sonhador: seu sonho de grandeza ficou no sonho. Depois de seu assassinato, os vorazes mercadores estrangeiros e os parlamentares criollos se apossaram do salitre. Para os estrangeiros, a propriedade e as concessões; para os criollos, os subornos. Recebidos os trinta dinheiros, tudo voltou à normalidade. O sangue de uns quantos milhares de homens do povo secou logo nos campos de batalha. Os operários mais explorados do mundo, os das regiões do Norte do Chile, não cessaram de produzir imensas quantidades de libras esterlinas para a City de Londres.

Allende nunca foi um grande orador. E como estadista era um governante que fazia consultas antes de tomar qualquer medida. Foi o antiditador, o democrata por princípio até nos menores detalhes. Coube-lhe um país que já não era a nação inexperiente de Balmaceda; encontrou uma classe operária poderosa que sabia o que estava fazendo. Allende era um dirigente coletivo; um homem que, sem sair das classes populares, era um produto da luta dessas classes contra o imobilismo e a corrupção de seus exploradores. Por tais motivos e razões, a obra que Allende realizou em tão curto tempo é superior à de Balmaceda; mais ainda, é a mais importante da história do Chile. Só a nacionalização do cobre foi uma empresa titânica. E a destruição dos monopólios, a profunda reforma agrária e muitos objetivos mais que foram cumpridos sob seu governo de essência coletiva.

As obras e os feitos de Allende, de indelével valor nacional, enfureceram os inimigos de nossa liberação. O simbolismo trágico desta crise se revela no bombardeio do palácio do governo. A gente evoca a blitzkrieg, da aviação nazista contra indefesas cidades estrangeiras, espanholas, inglesas, russas. Agora sucedia o mesmo crime no Chile; pilotos chilenos atacavam em piquê o palácio que durante dois séculos foi o centro da vida civil do país.

Escrevo estas rápidas linhas para minhas memórias há apenas três dias dos fatos inqualificáveis que levaram à morte meu grande companheiro, o Presidente Allende (nota ditirâmbica: assassinado após um golpe militar em 11 de setembro de 1973). Seu assassinato foi mantido em silêncio, foi enterrado secretamente, permitiram somente à sua viúva acompanhar o imortal cadáver. A versão dos agressores é que acharam seu corpo inerte, com mostras visíveis de suicídio. A versão que foi publicada no estrangeiro é diferente. Após o bombardeio aéreo, vieram os tanques, muitos tanques, para lutar intrepidamente contra um só homem: o Presidente da República do Chile, Salvador Allende, que os esperava em seu gabinete, sem outra companhia a não ser seu grande coração envolto em fumaça e chamas.

Não podiam perder uma ocasião tão boa. Era preciso metralhá-lo porque jamais renunciaria a seu cargo. O corpo foi enterrado secretamente num lugar qualquer. O cadáver que foi para a sepultura acompanhado por uma única mulher, que levava em si mesma toda a dor do mundo, a gloriosa figura morta ia crivada e despedaçada pelas balas das metralhadoras dos soldados do Chile, que outra vez tinham atraiçoado o Chile.

Pablo Neruda, tradução de Olga Savary.