quarta-feira, 20 de novembro de 2024
terça-feira, 19 de novembro de 2024
SONETO DE ABRIL - Natália Correia
SONETO DE ABRIL
Evoé! de pâmpano os soldados
rompem do tempo em que Evoé! a terra
salvé rainha descruzando os braços
com seu pé de papiro pisa a fera.
Na écloga dos rostos despontados
onde dos corvos se retira a treva,
de beijo em beijo as ruas são bailados
mudam-se as casas para a primavera.
Evoé! o povo abre o touril
e sai o Sol perfeitamente Abril
maravilha da Pátria ressurrecta.
Evoé! evoé! Tágides minhas
outra vez prateadas campainhas
sois na cabeça em fogo do poeta.
António Ramos Rosa (poema dedicado a Vasco Gonçalves)
DAQUI DESTE DESERTO EM QUE PERSISTO
Nenhum ruído no branco.
Nesta mesa onde cavo e escavo
rodeado de sombras
sobre o branco
abismo
desta página
em busca de uma palavra
escrevo cavo e escavo a cave desta página
atiro o branco sobre o branco
em busca de um rosto
ou folha
ou de um corpo intacto
a figura de um grito
ou às vezes simplesmente uma pedra
busco no branco o nome do grito
o grito do nome
busco
com uma fúria sedenta
a palavra que seja
a água do corpo a corpo
intacto no silêncio do seu grito
ressurgindo do abismo da sede
com a boca de pedra
com os dentes das letras
com o furor dos punhos
nas pedras
Sou um trabalhador pobre
que escreve palavras pobres quase nulas
às vezes só em busca de uma pedra
uma palavra
violenta e fresca
um encontro talvez com o ínfimo
a orquestra ao rés da erva
um insecto estridente
o nome branco à beira da água
o instante da luz num espaço aberto
Pus de parte as palavras gloriosas
na esperança de encontrar um dia
o diadema no abismo
a transformação do grito
num corpo
descoberto na página do vento
que sopra deste buraco
desta cinzenta ferida
no deserto.
Aqui as minhas palavras são frias
têm o frio da página
e da noite
de todas as sombras que me envolvem
são palavras
são palavras frágeis como insectos
como pulsos
e acumulo pedras sobre pedras
cavo e escavo a página deserta
para encontrar um corpo
entre a vida e a morte
entre o silêncio e o grito
Que tenho eu para dizer mais do que isto
sempre isto desta maneira ou doutra
que procuro eu senão falar
desta busca vã
de um espaço em que respira
a boca de mil bocas
do corpo único no abismo branco
sou um trabalhador pobre
nesta mina branca
onde todas as palavras estão ressequidas
pelo ardor do deserto
pelo frio do abismo total
Que tenho eu para dizer
neste país
se um homem levanta os braços
e grita com os braços
o que mais oculto havia
na secreta ternura de uma boca
que era a única boca do seu povo
Que posso eu fazer senão
daqui
deste deserto
em que persisto
chamar-lhe camarada
(poema
dedicado a Vasco Gonçalves)
sexta-feira, 15 de novembro de 2024
GANHAR A VIDA - Jeong Ho-Seung
GANHAR A VIDA
Mãe,
acho que vou fazer uma visita ao Inferno.
Não importa que seja muito longe.
Partirei de manhã como se estivesse a sair para o trabalho,
voltarei à noite como se tivesse saído do trabalho.
Não te esqueças das refeições, mastiga bem os alimentos antes de engolir,
certifica-te que desligas o gás quando saíres
e não te preocupes comigo.
O inferno deve ser um lugar onde vivem pessoas.
Se eu for para o Inferno para ganhar a vida
poderei finalmente tornar-me uma pessoa.
Jeong
Ho-Seung
(Coreia do Sul )
Mudado para português por _ Jorge Sousa Braga
terça-feira, 12 de novembro de 2024
Adonis / um espelho para o século xx - Ahmad Shamlou
Adonis / um
espelho para o século xx
Um caixão com
a cara de um rapaz
Um livro
Escrito no ventre de um corvo
Um animal selvagem escondido numa flor
Um rochedo
A respirar com os pulmões de um lunático:
É isto
É isto o Século Vinte
Ahmad Shamlou
trad. Maria de Lurdes Guimarães
campo das letras
2001
segunda-feira, 11 de novembro de 2024
. AO ENCONTRO DO ENCONTRO - Manuel Gusmão
Três curtos discursos em homenagem póstuma a Álvaro Cunhal
[primeiro
discurso "Uma chama não se prende" AQUI]
2. AO ENCONTRO DO ENCONTRO
para que eu pudesse fazer o meu caminho pelo
caminho comum e partilhar o tempo
a invenção, o desejo, o trabalho e a luta por
uma terra sem amos
para que nas histórias lidas desde a infância
eu aprendesse a descobrir os meus
a articular aquelas palavras
sobre as quais o confronto ainda não terminou
e assim nos movem para que eu pudesse sentir-me
esperado sobre
esta terra tão dilacerantemente bela
e tão insuportavelmente devasta
para que tendo aprendido a falar eu tivesse
podido encontrar os outros na minha língua
para que eu pudesse olhar, estender as mãos
e encontrar o corpo do mundo
como a minha tarefa comum
para que eu viesse e pudesse chegar a esta reunião
contínua
esta assembleia de homens
explorados e livres, oprimidos e
livres
foi necessário que a convocatória chegasse até mim
foi necessário que eles continuassem reunidos e me
esperassem
foi necessário que tu tivesses vindo e chegado antes
que te tivessem acolhido e te tivessem transformado o
nome próprio
em nome comum
domingo, 10 de novembro de 2024
NA MORTE DE ÁLVARO CUNHAL - Yvette K. Centeno
NA MORTE
DE ÁLVARO CUNHAL
Morreu um Bravo:
nem tudo sombra
nem tudo glória
Fica o exemplo:
a voz que não se
renega
o corpo que não se
encolhe
a luz da utopia
nas grades da memória
Yvette K. Centeno nasceu em Lisboa, em 1940, numa
família de origem germano-polaca. É casada, tem quatro filhos, e em sua casa a
música e a literatura estiveram sempre presentes. Licenciou-se em Filologia
Germânica com uma dissertação sobre O homem sem qualidades, de Musil, e
doutorou-se com uma tese sobre A alquimia no Fausto de Goethe. É desde 1983
Professora Catedrática da Universidade Nova de Lisboa, onde fundou o Gabinete
de Estudos de Simbologia, actualmente integrado no Centro de Estudos do Imaginário
Literário. Ainda em estudante interessou-se por teatro, escreveu peças e
rábulas, fundou o CITAC em Coimbra. Tem publicado literatura infantil, ensaio
de investigação, poesia, teatro e ficção, com romances como Três histórias de
amor (1994), Os jardins de Eva (1998) e Amores secretos (2006), tendo parte da
sua obra traduzida em França, Espanha e Alemanha. Entre os autores que traduziu
contam-se Shakespeare, Goethe, Stendhal, Brecht, Celan e Fassbinder.
sexta-feira, 8 de novembro de 2024
quinta-feira, 7 de novembro de 2024
As grades - Francisco Paco Urondo
Sono Nessuno
L’Ulisse di qualcuno
Do outro lado das grades está a realidade,
deste lado das grades também há realidade,
a única irreal são as grades.
Del otro lado de la reja está la realidad,
de este lado de la reja también está la
realidad,
la única irreal es la reja.
terça-feira, 5 de novembro de 2024
Os Anjos - Renato Russo
Os Anjos
Hoje não dá
Hoje não dá
Não sei mais o que dizer
E nem o que pensar
Hoje não dá
Hoje não dá
A maldade humana agora não tem nome
Hoje não dá
( Pegue duas medidas de estupidez
Junte trinta e quatro partes de mentira
Coloque tudo numa forma untada previamente
Com promessas não cumpridas
Adicione a seguir o ódio e a inveja
Às dez colheres cheias de burrice
Mexa tudo e misture bem
E não se esqueça: antes de levar ao forno
Temperar com essência de espírito de porco
Duas xícaras de indiferença
E um tablete e meio de preguiça )
Hoje não dá
Hoje não dá
Está um dia tão bonito lá fora
E eu quero brincar
Mas hoje não dá
Hoje não dá
Vou consertar a minha asa quebrada
E descansar
Gostaria de não saber destes crimes atrozes
É todo dia agora e o que vamos fazer ?
Quero voar prá bem longe mas hoje não dá
Não sei o que pensar e nem o que dizer
Só nos sobrou do amor
A falta que ficou
sábado, 2 de novembro de 2024
Isto - João José Cachofel
Isto
de ser o que se não é,
de andar sempre a mentir
(quantas vezes a nós próprios!)
tiranizados,
forçados,
chegando mesmo a esquecer,
por vezes,
que somos bois debaixo de uma canga:
Isto,
juro-vos,
ainda há de acabar.
quinta-feira, 31 de outubro de 2024
A poesia nas celas de Guantánamo - Hannah Arend
Even if the
pain of the wound increases
(Mesmo
que a dor da ferida aumente)
A poesia nas celas de Guantánamo
Não há bondade
onde não resplandeça uma claridade,
nem silêncio
onde não ressoe um som.
Desperta o silencioso
- que se mantém dormente.
ilumina a escuridão
que nos criou.
Não há trevas
que a luz não vença,
nem silêncio
que os sons não entoem.
Mas essa calma
que repousa no incerto
escurece em silêncio
a declaração tardia.
segunda-feira, 28 de outubro de 2024
Canção do Semeador - Miguel Torga
Na terra negra
da vida,
Pousio do
desespero,
É que o Poeta
semeia
Poemas de
confiança.
O Poeta é uma
criança
Que devaneia.
Mas todo o
semeador
Semeia contra
o presente.
Semeia como
vidente
A seara do
futuro,
Sem saber se o
chão é duro
E lhe recebe a
semente.
sábado, 26 de outubro de 2024
Pelos olhos de três crianças - Fidaa Ziyad
Pelos olhos de três crianças
Vivo este genocídio através do imaginário
de três meninos
O primeiro esconde-se sob os lençóis
Dizendo, querer ser um fantasma
Para que os aviões não o vejam
O segundo dizia, que a queda dos navios de
guerra
Era a voz do polvo no mar
E a terceira, uma menina: queria ser uma
tartaruga
Para esconder
todos
Sob a sua carapaça
Ó tu, mão da
imaginação,
embala o sono
destes meninos,
preserva para eles
todos os sonhos.
Ó tu, mão da
imaginação,
não vás para além
do horror da realidade.
Fidaa Ziyad
Fidaa
Ziyad é um poeta de Gaza. Este poema foi
escrito sob bombardeio em 24 de outubro de 2023, publicado em 25 de novembro e
revisado em 5 de dezembro. Transmitido no Facebook na série de videoclips
intitulada “Isto é Gaza, textos literários”, lidos por Fidaa Allawzi
Je vis ce génocide à travers
l’imaginaire de trois enfants
Le premier se cachait sous les draps
En disant je voudrais être un fantôme
Pour que les avions ne me voient pas
Le deuxième disait, du fracas des navires de guerre
C’est la voix de la pieuvre dans la mer
Et le troisième, une petite fille : Je voudrais être une tortue
Pour cacher tout le monde
Sous ma carapace
Ô toi la main de l’imaginaire
Berce le sommeil de ces petits
Préserve pour eux tous ces rêves
Ô toi la main de l’imaginaire
Ne va pas plus loin que l’horreur du réel
Fidaa Ziyad est poétesse de Gaza.
Ce poème a été écrit sous le bombardement le 24 octobre 2023, publié
le 25 novembre, revu le 5 décembre. Diffusé sur Facebook dans la
série de vidéoclips intitulée « This is Gaza, litterary texts », lu
par Fidaa Allawzi.
ATTRAVERSO
GLI OCCHI DI TRE BAMBINI
Fidaa Ziyad è una poetessa di Gaza. Questa poesia
è stata scritta sotto bombardamento il 24 ottobre 2023, pubblicata il 25
novembre, rivista il 5 dicembre. Trasmesso su Facebook nella serie di videoclip
dal titolo “This is Gaza, testi letterari”, letti da Fidaa Allawzi.
Vivo questo genocidio attraverso l’immaginazione
di tre bambini
Il primo si è nascosto sotto le lenzuola
Dicendo Vorrei essere un fantasma
Perché gli aerei non mi vedano
Il secondo ha detto, dallo schianto delle navi da guerra
È la voce della piovra nel mare
E la terza, una bambina: Vorrei essere una tartaruga
Per nascondere tutti
Sotto il mio guscio
O tu, la mano dell’immaginazione,
culla il sonno di questi piccoli,
preserva per loro tutti questi sogni.
O tu, la mano dell’immaginazione,
non andare oltre l’orrore della realtà.
sexta-feira, 25 de outubro de 2024
Um dia de peste e rancor (poema de urgência de Vicente Zito Lema)
"Se
disparassem mais a matar, país estava mais na ordem"
declarações
do líder parlamentar do Chega
Um dia de peste e rancor
(poema de urgência de Vicente
Zito Lema
Um dia gritaram de cara al sol
“Viva la morte”
E a luz fez-se escura / como escuro
é o sangue ...
Uma noite escreveram nas paredes
“Viva o cancro”
e a dor foi tão grande / tão espessa
que os corpos ficaram sem alma
Hoje vão a praças / ao obelisco
festejando
com bocas cheias de rancor
para que a Peste (há sempre uma
peste...)
se pegue aos corpos de uma vez por
todas aos
mais velhos
mais fracos
com mais fome
mais nus
Para que a Peste (há sempre uma peste...)
Seja como um rio que transborda
Que não vê / não sente / não perdoa
Tão natural e cruel como a morte...
Un día de peste y rencor
(poema de urgencia de Vicente Zito Lema)
Un día gritaron de cara al
sol
“Viva la muerte”
Y la luz se hizo oscura / como oscura
es la sangre…
Una noche escribieron por los muros
“Viva el cáncer”
y el dolor fue de tanto dolor / de tanta espesura
que los cuerpos quedaron sin alma
Hoy van a unas plazas / al obelisco
en plan de festejo
con bocas alzadas de rencor
para que la Peste (siempre hay una peste…)
se lleve de una buena vez a los cuerpos
más viejos
más débiles
más con hambre
más desnudos
Para que la Peste (siempre hay una peste…)
Sea como un río que se desmadra
Que no mira / no siente / no perdona
Tan natural y cruel como es la muerte…
Vicente Zito Lema
17 de agosto de 2020, día que, humillando el recuerdo de San Martín, y en
perverso uso de la palabra Libertad, el fascismo convocó a celebrar
segunda-feira, 21 de outubro de 2024
Lápides - Afonso Duarte
Lápides
Não sou um velho vencido!
Mesmo à beira da morte
Quero erguer o braço forte
Da razão de ter vivido.
Voz de amor por quanto louvo
Caia-me o coração exangue,
Mas sem traição do meu sangue
Que é a voz do meu povo.
sábado, 19 de outubro de 2024
Ao Sétimo Dia - Yvette K. Centeno
Ao
Ao
Dispersou-se
e
quinta-feira, 17 de outubro de 2024
O Apocalipse Árabe - Etel Adnan
O Apocalipse Árabe
XXXVI
Na escura irritação dos olhos esconde-se uma cobra
Nas expirações de americanos há um império em queda
Nas águas podres dos rios há os palestinos
FORA FORA de suas fronteiras a dor tem no pescoço uma coleira
Nos estames do trigo há insetos vacinados contra o pão
Nos barcos árabes há tubarões tombados de riso
Na barriga do camelo há rodovias cegas
FORA FORA do TEMPO há a esperança em pedaços da primavera
No dilúvio das nossas planícies não há chuvas mas pedras
Etel Adnan
traduções
de Ricardo Domeneck
XXXVI
The Arab
Apocalypse
In the dark irritation of the eyes there is a snake hiding
In the exhalations of Americans there is a crumbling empire
In the foul waters of the rivers there are Palestinians
OUT OUT of its borders pain has a leash on its neck
In the wheat stalks there are insects vaccinated against bread
In the Arabian boats there are sharks shaken with laughter
In the camel’s belly there are blind highways
OUT OUT of TIME there is spring’s shattered hope
In the deluge on our plains there are no rains but stones